O poema a seguir é, antes de tudo, um brado de amor à Iracema, um grito de alerta, um ai, um alento. Um canto de saudade por tudo o que já foi destruído no bairro. Um alerta para que tudo o que sobreviveu no tempo, pelo abandono e esquecimento, não venha a ser atropelado pela ação incontida da ganância. Um alento, pois Iracema sobreviverá a tudo e renascerá para um novo tempo de glória e prazer.
Para quem, que corno nós, ama a Praia de Iracema porque viveu suas brancas noites de luar. Suas verdes tardes de tanto mar, tanto mar... Adorou seus vermelhos entardecer na ponte metálica.
Para quem, que como nós outros, congelou o tempo no ardor das conversas no espaço aberto entre cada gole. Passeou morna preguiça pelas Tabajaras, Arariús, Groaíras na calma das velhas calçadas de pedra. Não dá para falar sobre Iracema sem paixão, sem estar "apaixonado" em todo o sentido gramsciano da palavra: o de "colocar-se numa posição e, mediante essa colocação e por causa dela, tentar entender uma tragédia".
Foi com esse espírito que entendemos a tragédia que ameaçou se abater sobre Iracema pela derrubada de suas relíquias, pelo aniquilamento de sua memória e, sobretudo, pelo flagrante desrespeito ao seu passado e à sua gente.
Gente que, apesar de ali morar, viver, trabalhar e amar, não foi, em momento algum do processo, consultada sobre o seu próprio destino. Gente que é o motivo mesmo desse poema.
E foi pois junto a essa gente mista de todas as "raças" e "nações" que fomos buscar, na riqueza cromática de suas vidas, a legitimação para as nossas elucubrações teóricas paridas na mesa das bibliotecas e a inspiração para as nossas tiradas metafóricas. "PRESERVAR É PRECISO" pixado em muros e calçadas seria uma palavra de ordem, um indício de resposta? Povo unido em associação? Consciente e ferido? Revoltado e apreensivo? Descrente e desiludido?
Fizemos nossa essa investigação e aqui estão registrados os resultados do contato com essa gente que não se limita, que não se restringe, que não se confina nos limites físicos do bairro, mas está ou se encontra sempre, a qualquer hora, em suas ruas, em seus bares, em suas praias, nas suas calçadas, nas pontes, vinda dos mais variados cantos da cidade, do país, do mundo, atraída pela sua fama tão cantada em verso e em prosa pelos seus amantes mais ardorosos, extasiados ante suas belezas naturais já não tão naturais assim mas mesmo assim ainda belas. Envolvida pela aura que perpassa o ar que ali se respira. Encantada pela magia que há nos mistérios que parece esconder cada canto. E vem como quem vem em busca da paz perdida. Da tranqüilidade roubada pelo "stress" da vida na metrópole. Como se o bairro não fizesse parte dela e ao transpor o asfalto na direção do mar retornasse ao “tempo dos quintais”.
Essa gente foi, durante algum tempo, importunada por nós em seus lares. Abordada nas ruas. Nos bares. Calçadas. Na praia. No trabalho. Com perguntas sobre suas vidas. Seus hábitos. Seus desejos. Suas opiniões. Dando entrevistas. Respondendo questionários. Sempre num clima de tranqüilidade e confiança. Sem afobamento. Sem pressa. Sem documentos. Sem estranheza. Assim, naturalmente. Como se fosse natural a gente estar ali. Como se no fundo soubesse que viríamos e estivesse à nossa espera. Com sorrisos. Cafezinhos. E o doce-em-calda feito em casa guardado na compoteira para essas ocasiões. Tudo exatamente como manda a tradição.
Tradição e história que percorriam as ruas do bairro, da Rui Barbosa a Almirante Tamandaré. Da praia à Monsenhor Tabosa. Hoje, perseguidas pela modernidade, encontram-se acuadas e ameaçadas no perímetro compreendido pelas ruas João Cordeiro, Almirante Barroso, Caririrs e o mar que, por ser o último reduto que ainda guarda, no conjunto, o clima e a paisagem da época, foi por nós considerado, para efeito desse poema, a Praia de Iracema ou simplesmente e, carinhosamente, Iracema.
O que foi escrito não se restringe ao processo de destruição do bairro e que se desenvolveu bem às nossas vistas e às vistas de toda uma cidade que às vezes se faz cega para não ver e não vendo não ser obrigada a se posicionar e assim não ter que agir.
Processo de destruição dessa tradição para no seu lugar ser implantado o novo, moderno e duvidoso. O bairro, para nós, não é simplesmente um objeto de investigação. É uma causa, uma paixão. E como paixão merece cuidado e ação.
Ação contra o poder destruidor das coisas belas. E essa é a ação que nos cabe encetar contra o "monstro da lagoa". Esse é o objetivo desse poema: tentar ser uma força, mais uma força, por menor que seja, porém mais uma a se somar às outras na luta contra a destruição da Praia de Iracema que teve início há muito tempo pela ação do mar, que o homem tentou domar e só conseguiu enfurecer e que, agora a ganância desenfreada de homens poderosos quer completar.
Para ser uma força o poema deveria ser mais que uma elegia. Seria fácil fazer um poema ao mesmo tempo terno e triste sobre Iracema. Afinal há muita tristeza em quem fala de Iracema ameaçada de morte. Há muita ternura ao evocar sua lembrança. Também não é hora ainda de escrever um réquiem. Ainda há tempo para arregaçar as mangas e lutar para que ela não morra. Chamar o médico. Chamar o pronto socorro, que venham as ambulâncias. Que se tente de tudo contra o mal que a ataca de forma tão mortal. Se nada disso der jeito, apelar para as infusões, beberagens, chás de ervas caseiras. Essa cura terá que vir do povo com a sabedoria que ele sempre tem. Do povo do bairro: povo que mora. Do povo de outros bairros. De outras cidades. De outros estados. De outros países. De outros mundos. Povo que usa e abusa. Povo que trabalha. Povo que ama. Povo que explora. Povo que adora. Povo que curte.
De que é feito afinal essa Iracema tão cantada? Como é o seu visual tão belo e formoso? De que barro é feito seu chão? De que cor é seu céu? Que ventos sopram pro lado de lá? Que elementos formam a sua natureza de tantas raças e nações? Que sangue corre em suas veias que a faz tão "caliente"?
Que é Iracema antes de ser casas, pontes, ruas, pousadas, escritórios, bares, restaurantes?
Iracema, antes de tudo, é mar. Pedaço de oceano onde tudo começou. Mar que atraiu os primeiros aventureiros para os seus domínios. Mar que atrai. Mar que alimenta. Mar que manso encanta. Mar que na fúria da ressaca assusta, espanta e é capaz de destruir.
Iracema de destino traçado pelo mar. Iracema de destino ligado ao mar. Iracema de mar e de lua. Combinação que faz os poetas e imortaliza o seu nome.
Mar e lua que abençoaram os então concorridos "passeios ao luar".
Lua e mar que hoje fazem a alegria dos "velhos marinheiros" viajantes da noite.
Mar e lua que atraem de muito longe os teus curtidores eventuais, teus habitantes temporários, teus adoradores circunstanciais.
Iracema é sol. Sol de todas as estações. Sol que dá o tom do verde do seu mar. Sol que dá o tom da sua pele morena.
Iracema que já foi coqueiros. Coqueiros que faziam o contraponto à horizontalidade predominante da paisagem marcada pelo mar. Coqueiros que deram lugar a postes, antenas de tvs, espigões.
O que hoje é Iracema, não faz um século, engatinhava na areia de um pedaço de litoral sombreado de coqueiros.
Nomes, teve muitos, até ser batizada Iracema, nas colunas dos jornais.
Iracema, primeiro Grauçá, nome emprestado de um molusco - um caranguejo brancacento - sarará.
Iracema das âncoras descendo ao fundo. Das redes varando as águas. Da espera em alto mar.
Praia do Peixe.
Iracema que teve por brinquedo a tarrafa. Por diversão velejar. Por cartilha os astros. Por ocupação pescar. Bairro dos Pescadores.
Iracema das velas pontilhando o horizonte. Das redes secando nas cercas. Das jangadas a espera de mar. Porto das jangadas.
Iracema de um tempo marítimo determinado por ventos e marés.
Um tempo de maresia perdido num tempo branco.
Tempo branco de Fortaleza, de começo de século, começando a despontar. Tempo das Trading Company. Fortaleza preocupada em exportar.
Tempo de vapor e de composição.
Tempo branco ligando o sertão ao além-mar.
Tempo dos navios ancorados em alto mar. Dos "catraeiros" cansados. Dos estrupícios para embarcar.
Fortaleza descendo o outeiro em direção à praia.
Fortaleza invadindo o domínio das jangadas a procura de um novo local para aportar. Fortaleza da ponte metálica - solução precária e conciliatória.
Ponte, passarela da elegância de Fortaleza começando a reinar. Ponte. Escadas. Catraias. Navios. Pessoas e cargas na aventura de embarcar.
Vivia-se um tempo mercantil determinado por cotações e taxas de câmbio. Tempo de mar e trilhos.Trilhos urbanos. Bondes humanos.
Mar caminho do infinito.
Mar da chegada. Mar da ida. Mar da volta.
Mar de olhar pela janela. Mar de não passar da porta.
Mar do peixe. Mar da isca. Mar da vela. Mar da costa.
Mar distante. Admirado. Temido. Desconhecido a quem não se permite intimidades.
Mar do navio de muitos calados. Do negócio. Do dono. Do sócio.
Mar da paz. Da guerra. Da batalha. Da festa. Do jogo. Do ócio.
E vivia Iracema (n)a estranheza da fama e do abandono. Da tradição ao esquecimento. Entre lixos acumulados nos pés das calçadas e sons de mar e canto que se confundem ao luar.
Do luar e do canto sabem os boêmios e poetas.
Contra o lixo, as águas estagnadas, os calçamentos desfeitos, as casas em ruínas, os entulhos nos terrenos baldios, os esgotos clandestinos, protestam e lutam os moradores.
Do alto dos organogramas oficiais homens públicos apregoam suas boas intenções. Prometem. Aumentam a descrença dos homens comuns habitantes desse planeta de mar e lua.
Homens comuns que viram o bairro nascer e tomar forma. Pioneiros.
Homens que nasceram com ele e nunca o abandonaram. Nativos.
Homens. Tantos homens de tantas raças e nações que dele fizeram a sua pátria. Forasteiros.
Homens outros, passageiros de estações, que o procuram atraídos pelo seu passado de lendas. Peregrinos.
Homens que falam tristezas e saudade de outras manhãs. Que traduzem a história em sorrisos nostálgicos, olhares enigmáticos, dando aos fatos grandezas épicas. Patriarcas.
Homens que choram em versos suas tragédias. Que exaltam em prosa suas belezas. Cantam em doces melodias o seu nome. Poetas.
Homens que escutam, pressentem a algaravia dos novos tempos, dão contornos nítidos ao intangível. Profetas.
Homens que vagueiam e não se prendem à terra, mas que sempre estão de volta ao tempo perdido. Ciganos.
Homens a espreita de ganhos e lucros. Mercenários.
Homens do dia-a-dia de belezas e incertezas. Aventureiros.
Incertos os homens comuns no tempo que há de vir. Apreensivos percrutam o céu a procura de sinais. Prenúncios de turbulência.
Zelosos homens públicos tentam mudar o que está escrito nos livros dos doutores da lei. Pressurosos facilitam a invasão. O troar das picaretas abafa os violões. Desmoronam ícones. Prepara-se o terreno para o tempo de novos ídolos. Ídolos de uma nação de gentios. Estrangeiros abrindo novas fronteiras.
Expulsos, os antigos marcham rumo ao desconhecido.
Outros tempos. Outros hábitos. Outra gente.
O bairro se espreguiça ao longo da praia. O casario se espraia ao solo acompanhando a horizontalidade do mar que lhe serve de cenário, e as leves ondulações do perfil são edificações, que não ousam quebrar, em altura, o ritmo das marés mais violentas. Só mesmo a linha tênue e vertical dos coqueiros num contraponto a essa ondulação.
Um risco de nanquim. Uma pincelada de guache. Composição no ar.
Argamassa, tintas, tijolos - paredes.
Vidros multicoloridos, ferros-fundidos - vitrais.
Portas, janelas, balcões - fachadas.
Caibros, ripas, telhas, telhados, manchas avermelhadas, galos e quintais.
Casas e casas. Chalés. Ainda hoje guardam lembranças.
Casas e casas. Bangalôs. Hoje desbotados. Quase ruínas.
Casas outras só pressentidas em linhas que rumam e se escondem por detrás de formas quadradas e agressivas.
Casas, tantas casas cinzentas e nebulosas. Quem as pode pressentir! Para descobri-las só mesmo a teimosia e a sensibilidade
Casas que se sucedem ombros colados. Outras, num chega para lá, cismam solitárias em seus domínios.
Casas que olham de perto as outras à sua frente, em ruas que só ligam, nunca separam. Não separam casas. Não separam homens. Não confinam crianças. Não favorecem o carro, apenas o toleram, o disciplinam, o contêm, em sua pouca largura. Nas pedras irregulares que compõem seu chão e que não o estimulam a correr. Na paisagem que o convida a passear.
Ruas que acompanham o mar. Ruas que vão dar no mar.
Ruas que nascem no bairro e morrem com ele.
Bairro rasgado ao meio pela violência das "cirurgias urbanas" reclamadas pela urbanização.
Iracema pedaço do bairro onde não se chega por acaso, mas que se procura se busca e se acha e se chega e não se quer deixar.
Iracema da Tabajaras, espinha dorsal onde tudo se articula.
Iracema da Groaíras tímida e recatada.
Da Cariris que adentra ao mar.
Da Potiguaras beco sem saída
Da Guanacés tão estreita e reservada.
Da Alegre que termina antes mesmo de começar.
Da Arariús limite de fronteira interna.
Iracema dos terrenos baldios de todos os usos e de uso nenhum.
Iracema dos terrenos guardados para especular.
Iracema das praias cantadas e poluídas.
Iracema verde só de mar.
Iracema dos esgotos clandestinos. Das águas que não têm como escoar.
Iracema que não vive só de beleza.
Iracema que o Governo esqueceu e a especulação acaba de encontrar.
Iracema de futuro incerto e presente ameaçado.
Iracema família. Iracema boêmia. Iracema trabalhadora.
Feições diversificadas que se permitem, que se adequam e, às vezes, se chocam, mas que normalmente convivem em harmonia pela flexibilidade de sua forma peculiar de vida.
Iracema família que ainda cultiva roseirais e não dispensa os quintais.
Iracema família que ainda se espanta com porteiros e elevadores.
Iracema que pressionada pela crise mora e trabalha no mesmo lote.
Iracema boêmia que empresta seu solo ao lazer de todos os gostos e idades. Nos bares ou nas pontes que adentram ao mar. Nas praias e nos banhos de mar. Nos recantos a namorar. No calçadão a desfilar.
Iracema que atrai e acolhe os que trabalham na calma de quem não tem patrão ou relógio.
Iracema das casas que se transformam em bares. Dos bares que são derrubados para dar lugar a edifícios de dezoito andares. Das edificações que dormem residências acordam escritórios. Amanhecem escritórios. Anoitecem pousadas.
Iracema paraíso da indústria hoteleira. Do Brisa da Praia. Do Hotel Jangadeiro. Da Pousada Turismo. Do Turismo Praia Hotel. Do velho Hotel Pacajús. Do Tradicional Iracema Plaza.
Casas de pais presentes e zelosos.
Casas sem donos largadas na orfandade.
Casas de pais adotivos que cuidam, mas não decidem os seus destinos.
Casas de pais padrastos que mesmo perto não se desvelam em cuidados.
Casas enjeitadas que acolhe enjeitados.
Casas e casas.
Até quando?
Praia. Mar. Areia. Céu. Lua. Sol. Horizonte. Zenital.
Elementos em composição. Cenário natural. Objetos de contemplação.
Casas. Ruas. Pontes. Bares. Pousadas. Hoteis. Janelas. Quintais.
Elementos em transformação. Testemunhos da história. Cenários em ebulição.
Homens. Mulheres. Crianças. Moços. Velhos. Moças. Vestais.
Agentes da transformação. Protagonistas dos fatos. Donos da emoção.
Praia de Iracema. Síntese de todos os elementos.
Palco e arena dos dramas da vida e das batalhas do dia-a-dia.
Iracema. Intérprete de mil faces. Mil gente.
Iracema criança inda ontem a correr pelas ruas em folguedos. Hoje, expulsa das calçadas, espia o mundo por entre grades de janelas e portões. Protegidas do Perigo. Esperança de futuro. Certeza de vida.
Iracema das encruzilhadas do trânsito. "pastoradoras" de carros. Cheiradoras de cola. Pequenas aprendizes das artimanhas das ruas. Refugiadas dos cortiços mal vestidos. Órfãs do mundo. Soltas na noite. Desgarradas da vida.
Iracema mulher de vocação boêmia. De Luz DeI Fuego de histórica passagem. Das "Coca-Colas' prenhes de saudade. Das vozes femininas varando as noites em viagens siderais. Estrelas da noite. Artistas da vida.
Iracema mulher de tradição de luta. Articuladora da resistência. Mulher que dá plantão. Mulher que passa. Que amamenta. Mulher que ama. Se cansa. Se agasta. Sonha. Se frustra. Chora. Se basta. Sustentáculos de todas as barras. Construtoras da vida.
Iracema que adora o sol na ponte metálica. Castiga nas ondas. Colore as manhãs de muita luz. Descola gatinhas no calçadão. Barbariza no breack. Arrasa no fliperama. Dribla na quadra. Craques das peladas e da vida
Iracema de cadeiras nas calçadas em prosa com vizinhos e parentes. Que troca informações e favores. Guardiãs da moral e dos bons costumes. Observadoras do mundo. Contraladoras da vida.
Iracema mendiga de pão e de afeto. Que chora misérias em cada porta. Que cata migalhas nas coxias. Que veste trapos e anda descalça. Desamparadas da sorte. Exiladas da vida.
Iracema apressada atrás da condução. Que tem medo de perder o emprego. Que vive atolada em dívidas. Escrava do cartão de crédito e das "suaves prestações mensais". Iracema dos planos desfeitos. Das férias em casa. Das viagens sempre adiadas. Da eterna espectativa de aumento. Da rígida contabilidade doméstica. Do décimo terceiro de muitas destinações. Da contagem regressiva para a aposentadoria. Escravas do ponto. Malabaristas da vida.
Iracema que perambula pelas ruas em ociosos devaneios. Que amanhece nos bares. Anoitece nas praias. Cidadãs da noite. Curtidoras da vida.
Iracema de pasta e gravata. "Sério por trás de óculos e bigodes". Sempre às voltas com números. Investimentos. Taxas de juros. Viagens de negócios. Inflação. Eleição. Especuladoras do futuro. Programadoras da vida.
Iracema que habita. Mora. Se esconde por trás de muros e grades. Protegida por cães de guarda e porteiros eletrônicos das vistas e da cobiça dos passantes e curiosos. Herdeiras da fortuna. Prisioneiras da vida.
Iracema sossego do dominó nas calçadas. Do encontro marcado com as tardes do Getúlio. Compromissadas com peixes e linha. Aposentadas da lida e da vida.
Iracema que se abriga. Se asila. Se amontoa em barracos de papelão e madeira. Que divide, em velhos sobrados abandonados, dores, alegrias e intimidades com tantos outros de igual destino. Passageiras da chuva. Desabrigadas da vida.
Iracema artista que faz dos muros telas imensas e belas. Artistas da vida.
Iracema das venezianas. Das intimidades pressentidas. Na tua pele Fortaleza vem buscar prazer e liberdade. Nos teus olhos beleza e tranqüilidade. Nas tuas formas memória e identidade.
Fortaleza que procura em ti inspiração para os seus poetas.
Fortaleza que comercializa tuas noites em tantos bares, tantos clubes que confirmaram no tempo tua vocação boêmia. Do Ramon tragado pelo mar. Do Estoril de eterna presença. Resistência e referência. Palco de tantos acontecimentos históricos. Vila Morena. Clube dos Oficiais Americanos da II Grande Guerra. Do Lido de respeitável passado e polêmico fim. Do Jangada Clube orgulhoso de tantos visitantes famosos. Hoje só escombro. De tantos outros de igual destino.
Fortaleza que se cala em muda adoração a cada vermelho entardecer na ponte metálica.
Fortaleza boêmia que acorre a teus bares e botecos. Que canta a tua noite. Que confidencia em tuas mesas. Embebeda emoções. Entusiasmada vomita certezas duvidosas.
Fortaleza que procura na tua exuberância fugir da frieza dos paredões de "cimento e lágrimas".
Fortaleza que procura nas tuas ruas estreitas e irregulares quebrar a monótona rigidez do traçado ortogonal e a anônima rapidez das grandes artérias.
Fortaleza que pisa tuas calçadas de pedra para fugir da aridez dos tapetes de asfalto, negros e quentes.
Fortaleza que usa teu nome para angariar prestígio e divisa.
Fortaleza que procura na originalidade dos nomes indígenas de tuas ruas matar a saudade dos belos nomes dos seus antigos boulevards.
Fortaleza estressada que procura em ti a calma e a mansidão perdidas na pressa e na violência do novo.
Fortaleza interesseira que só lembra de ti para te sugar e te usufruir. Que deixa, a ti, esquecida e abandonada no tempo. Exaurida descobre, em ti, fronteiras a desvendar. Terras a colonizar. Espaços a (re)ocupar. Potenciais a explorar. Lucros a contabilizar.
Fortaleza. Iracema não te quer mãe cruel, loba faminta, que devora os próprios filhos na voragem do poder e da glória. Iracema não quer os teus modos. A tua feição. Iracema quer respeito.
Que não violentes seus filhos.
Que não estradites sua gente.
Que não demulas seus ícones.
Que não ultrajes seus deuses.
Que não profanes seus templos.
Que não ridicularizes suas crenças.
Iracema quer cuidados
Iracema em suas mil faces. Mil gente. Assim pensa. Assim quer
Que assim seja.
E os anjos disseram amém.
Iracema sobreviveu a tudo e renasceu para um tempo de glória e prazer.
Um novo templo. Um novo monumento. Um novo explendor.
Iracema mudou.
Mudou de cara. Mudou de roupa. Mudou de cor.
Mudou de som. Mudou de voz. Mudou de cantor.
Mudou de gosto. Mudou de tempero. Mudou de sabor.
Mudou de gente. Mudou de amigo. Mudou de amor.
Mudou de casa. Mudou de janela. Mudou de visor.
Mudou de rítmo. Mudou de escala. Mudou de valor.
Mudou de luzes. Mudou de tom. Mudou de refletor.
Mudou de tempo. Mudou de clima. Mudou de calor.
Mudou de crença. Mudou de altar. Mudou de fervor.
Mudou de tema. Mudou de prosa. Mudou de humor
E agora por onde anda Iracema da noite. Do dia. Da hora. Do espaço.
O que pode ser feito para trazê-la de volta no tempo desses anos de solidão?
Que é feito desses personagens
Desses espaços em constante mutação?
Que é dos bares que foram adotados
Para segunda moradia?
Refúgio nas noites de solidão
Encontro de idéias varando a madrugada
Que é feito das casas geminadas
Das cadeiras nas calçadas
Das janelas
Das sacadas
Iracema de destino polêmico e incerto
Fadada ao abandono.
Por onde anda sua gente
De tantas tribos diferentes
Que vivia alegre pelas ruas, calçadas.
Portas e janelas escancaradas
Na doce convivência de vizinhos
Se eu adivinho!
Expulsão da gente nativa
Invasão de gente estranha
Que não sabe do seu valor
Só pensa no lucro fácil
Na concorrência
E promoveu o começo do seu fim
Iracema passou da calmaria das letárgicas noites de lua e estrelas
Dos cantos dolentes varando as madrugadas
Ás pelejas estridentes pelas calçadas
Dos carros que passeavam
Apreciando a beleza das suas casas
Em sintonia com o sossego de suas vidas
À irracionalidade das buzinas e roncos estridentes
Disputando ruas e calçadas
Com pedestres
Freqüentadores notívagos
Assustando boêmios desavisados
Que despreocupados peregrinavam de bar em bar
Numa confraternização etílica fraternal.
Que mal há nisso?
Eles pressentiam e procuravam
Salvar Iracema da destruição
Que fatalmente aconteceria
E trazer de volta a sua magia
E sofriam vendo a sua iminente destruição
Iracema que tanto atraía
Transtornada expulsou quem a amou de verdade
Para viver o doce engano das noites
De desenfreada euforia
De uma gente estranha
Que chega e vai sem compromisso
Deixando o risco para quem fica no abandono
Cão sem dono jogado na sarjeta
Agora é urgente mudar
Mais mudanças à vista
Por mais que exista boa vontade em promover reformas
Tem que pensar de que forma vai ficar
Se deixar que novamente aconteça
Em nome de uma imagem
Apregoada e vendida
Como marketing da liberdade
Total e irrestrita
Por mais forte que seja
Iracema não resistirá a uma nova destruição
Preste atenção!
Quem fica aqui sofre vendo
Com que voracidade
Chegam vindo de qualquer canto
Só pensando em se divertir a qualquer preço
De qualquer jeito
A todo custo
Sem limites e sem susto
Sem regras e sem protocolos
E vão embora impunemente
Sem respeitar a vida do lugar
Só deixando em seu rastro
Desgraça e destruição da cultura local
Foi mal!