Estava em pleno semestre letivo e a solução encontrada para que ela não ficasse prejudicada nos estudos quando o seu pai teve que voltar para a cidade de onde viera a menos de três anos atrás, para assumir um novo emprego, foi deixá-la na casa de algum parente ou amigo, como já acontecera em outras ocasiões.
E a escolha dessa vez recaiu naturalmente sobre alguém da família, uma tia da mãe que morava com a filha e o genro num sobrado antigo na cidade de Caicó, no Rio Grande do Norte.
E foi na casa dela que, alem de ter que conviver com os constantes e terríveis conflitos que o trio protagonizava diariamente, ela ainda teve que se envolver em uma aventura noturna e solitária que muito a incomodou.
Ainda sob o efeito traumático de mais uma separação brusca da família, cheia de saudades e temores pelo começo de uma nova etapa da sua vida, numa casa estranha com pessoas com quem ela não tinha a menor intimidade, apesar do ligeiro parentesco, ela acomodou-se discretamente chorosa na intimidade do seu quarto onde pretendia ter uma noite tranquila de sono para enfrentar o dia seguinte em outro ambiente estranho e atribulado, como já dera pra perceber.
Mas o seu sono que pretendia ser tranquilo foi quebrado bruscamente pelo desagradável e inesperado impacto de um objeto frio e mole sobre o seu corpo. Em meio ao susto e sem entender direito o que estava se passando imediatamente pulou e, ainda ofuscada pela luz do quarto que atabalhoadamente acendera, passou a sacudir a rede com violência e decisão para expulsar o que havia caído sobre ela e devia estar ainda acomodado no fundo da rede agora vazia.
Com esse movimento ela deu de cara com um ser estranho meio rato meio pássaro de pele escura que, atordoado pela ligeireza e violência do contra-ataque, jazia imóvel esparramado no chão do quarto. Um bicho que ela logo identificou como sendo um morcego. E pensar que esse ser abjeto e nojento caiu do céu direto na minha rede, em cima de mim? Ai que horror!
Coitadinhos dos morcegos! Tão importantes e tão injustiçados, pois apesar de contribuirem substancialmente para o equilíbrio dos ecossistemas de quase todo o planeta Terra, uma vez que só não são encontrados nos pólos, são temidos e e causam nojo e asco nas pessoas por puro preconceito e desconhecimento.
Coitadinhos dos morcegos! Tão importantes e tão injustiçados, pois apesar de contribuirem substancialmente para o equilíbrio dos ecossistemas de quase todo o planeta Terra, uma vez que só não são encontrados nos pólos, são temidos e e causam nojo e asco nas pessoas por puro preconceito e desconhecimento.
O céu a que ela aludia era o telhado do sobrado antigo que sem ser forrado, reunia as condições ideais - um vão imenso entre o chão e a cumeeira do telhado do casarão - um verdadeiro paraíso para os morcegos que se dependuram nas linhas e caibros durante o dia para de noite praticarem os seus vôos rasantes pelo quarto, sendo que um terminou desastradamente numa aterrissagem forçada sobre a rede armada bem no meio do imenso quarto onde ela iria dormir durante todo o tempo em que permanecesse naquela casa.
No susto ela sentia que do chão ele parecia lhe olhar, com um olhar de quem estuda o inimigo para depois desferir um golpe certeiro e mortal.
Agora um pouco mais calma pela imobilidade momentânea do bicho, ela começou a tomar as rédeas da situação, ao mesmo tempo que se dava conta do absurdo do seu pensamento, pois sempre soubera que morcego não enxerga e se move guiado pelo eco dos sons que emite constantemente e que volta para eles quando interceptam um obstáculo e os guia como o sonar o faz com o submarino. Então como ele podia estar lhe fitando ameaçadoramente? Fruto do medo paralisante..
Isso tudo se passou num átimo de segundo até ela vencer o pavor que estava sentindo daquela criatura protagonista de tantas histórias e lendas que povoam o imaginário das crianças pelos interiores e que compõem o folclore de talgumas regiões desse nosso imenso país e que estava ameaçando paralisá-la deixando-a a mercê das atitudes dele, o que não era nada bom pra ela.
Imagina se ele resolve passar a noite treinando voos rasantes e aterrissagens forçadas instituindo para isso, o seu quarto como aeroporto improvisado e fizesse da sua rede uma pista de pouso?
Foi pensando nisso que ela se armou de todo restinho de coragem que ainda possuía e partiu para a eliminação da nave derrubada enquanto o visitante inoportuno, um ialienígena, um verdadeiro intruso que invadira sua vida assim tão de repente, bem ela ali se instalara, continuava atordoado sendo portanto alvo fácil para as certeiras chineladas daquela guerreira disfarçada de garota, e que começaram meio tímidas e amedrontadas para depois, vendo que não havia reação por parte da vítima, ganharem coragem e força e se transformarem em fúria desenfreada. Sede de vingança pela audácia do morcego em vir perturbar seu sono daquela forma tão assustadora.
Nessa ocasião ela nem se deu conta que o intruso alí não era bem ele ,que há muito habitava aquele espaço que ela sem querer invadira!
Nessa ocasião ela nem se deu conta que o intruso alí não era bem ele ,que há muito habitava aquele espaço que ela sem querer invadira!
Mas ela só sossegou e voltou a dormir quando o viu ali no chão completamente destroçado e morto, esperando que o dia amanhecesse para ser “rebolado no mato”, o que no linguajar local da época, ano de mil novecentos e sessenta e seis, significava ser descartado solenemente em qualquer lugar da rua ou do quintal da casa. Sem nenhum pudor ou preocupação com o ecologicamente correto que ainda estava longe de existir por aquelas bandas.
Pensando que com isso encerrava aquele episódio que julgava único, isolado e desagradável da sua noite de estréia no sobrado, diga-se de passagem, uma estranha forma de dar as boas vindas no meio da noite a alguém que acabara de chegar, parecendo mais com trote idiota de veteranos pra cima de calouros, ela voltou para o aconchego da rede onde continuou a dormir até o cantar do galo e o cheiro de café ao amanhecer fazê-la despertar para o primeiro dia na casa em mais uma nova e provisória fase da sua vida.
Qual o que! Doce ilusão. A caçada estava só começando. Ainda muitas lutas para vencer. Muitas batalhas diurnas que ela iria presenciar na casa entre os três membros da família dariam a essa menina ainda adolescente mais um estágio para a conclusão do curso “Como passar incólume por uma guerra doméstica” que lhe concederia um diploma extracurricular de extrema importância para toda a sua vida.
Era um “triunvirato” de brigas. Brigava a mãe com a filha. A filha com o marido. E a sogra com o genro. Era uma guerra de titãs. Se fossem partir para a agressão física poderia sair dali um campeão de Sumô, tal o peso pesado que eles eram.
E ela chochinha, acanhada, assustada com aquilo que não compreendia muito bem teve de rapidamente se adaptar a tudo e tentar passar incólume por aquela guerra que não lhe pertencia e que, com a graça de Deus, ela em breve deveria deixar para trás como mais um triste aprendizado. Inevitável, o chamado “mal necessário”, uma vez que não havia outro jeito. Era tirar o melhor proveito possível de tudo que estava passando ali e em outras ocasiões semelhantes por toda a sua infância, adolescência e juventude, para poder aplicar depois..
O que ela não sabia era que logo, logo ela seria instada a por em prática tudo o que aprendera até então na arte milenar dos chineses, aquela representada pelos três macaquinhos.
Enquanto isso a noite lhe reservava uma surpresa, uma nova batalha nessa guerra que parecia ter se instalado na sua vida.
Ela não podia imaginar que em outro front ela teria também que enfrentar uma guerra noturna e particular contra o ataque dos morcegos que começou logo na primeira noite e teve muitos episódios até a batalha final.
Pior que logo na noite seguinte, com tristeza e uma certa raiva, ela pode constatar que aquele primeiro ataque não fora um episódio único e isolado nem era algo fortuito mas ainda se repetiria muitas vezes.
Essa triste constatação a fez perceber que ela teria daí em diante que ter muita coragem e audácia para enfrentar e vencer os ataquesse noturnos e se preparar para minimizar os efeitos daquelas batalhas sobre as suas noites de forma a não perturbar o seu sono e não ter reflexos negativos sobre os seus estudos.
Foi então que, para não ter que ficar a noite toda de plantão esperando a hora do ataque, ela desenvolveu uma técnica muito interessante. Dormia sob as cobertas com o lençol esticado da cabeça aos pés de forma que quando ele aterrissava batia no lençol esticado que o catapultava pelo quarto fazendo-o cair no chão já atordoado dando tempo para ela se levantar, acender a luz e matá-lo a chineladas. Sem chances de reação de fuga.
E pela manhã mais um cadáver de morcego estendido no chão era a única testemunha muda do que se passara naquele quarto entre uma serial killer e as suas vítimas; os morcegos audazes. E ela então com ares de vencedora atravessava a casa toda triunfantemente carregando aquele minúsculo cadáver pelas pontas dos dedos e o rebolava no fundo do quintal da casa. Esfregando as mãos de contentamento ela corria para o banheiro onde fazia a sua toillette du matin antes de ir para o colégio.
E podia comemorar mais uma batalha ganha das cento e vinte e duas travadas nas noites que ela passou naquele sobrado. Cento e vinte duas batalhas creditadas na sua conta de caçadora de morcegos. Cento e vinte e dois extermínios de espécimes representantes da Ordem Chiroptera debitados na conta da futura ambientalista.
Hoje ao relembrar esse episódio com um certo distanciamento mostrando que os reflexos psicológicos de tudo isso foram absorvidos e já não causam traumas e ressentimentos, ela comenta, com aquele humor que lhe é tão peculiar, não saber quem vai pagar a conta pelo desequilíbrio ecológico que a sua atitude de caçadora de morcego possa ter causado na natureza. Afinal foram aproximadamente cento e vinte e dois morcegos exterminados em um espaço de pouco mais de quatro meses.
Mas se for assim, diz ela, eu também deveria pedir a conta das noites de sono mal dormidas que eles me fizeram passar. Só que não sei a quem ou o que deveria acionar para isso.
Então põe na conta das almas, como se costuma dizer.
E damos por encerrado esse episódio que seria trágico se não fosse tão cômico. Caçadora de morcegos, pois sim! Eu em!!!
É o fim!

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