quinta-feira, 28 de julho de 2011

BAGUNÇA BENDITA

A desarrumação do quarto
É um fato
Mas antes de ser um sinal de alerta
Um transtorno
Um defeito
Uma má educação
Um perigo

Nem ligo
É um estado de espírito
Um indício de ocupação
Do coração e da casa
O que dá asas
À imaginação e à mente
Sempre em completa ebulição.

sábado, 23 de julho de 2011

A vitória de Davi sobre Golias nos céus da minha cidade


Contando ninguém acredita. Só mesmo vendo para crer. Por mais incrível que possa parecer, foi isso mesmo que eu acabei de ver nos céus da minha cidade. A vitória de Davi sobre Golias, que ninguém podia prever. Foi assim seu moço que vi tudo acontecer. É a pura verdade. Pode crer.

 

Numa manhã cinzenta,

Uma andorinha cisma modorrenta

Empoleirada na antena da tevê.

 

Era um dia qualquer do ano, logo ao amanhecer,

Nem te conto!

 

De um ponto qualquer no espaço

Arteiro e atrevidaço um predador matreiro

A tudo observa esperando a hora certa

De dar o bote certeiro.

 

Prenúncio de mais uma carniçaria.

Golias já percebeu e registrou a situação

Que está lhe parecendo mais uma ninharia.

 

Chegado o momento

O abominável animal

Inicia o voo em círculos concêntricos

Espiralados na direção da pobre vítima

Que hipnotizada

É presa fácil e abochornável

 

 Tonta,

Se sentindo encurralada

Como numa cerca virtual

Está à mercê do grandão malvado

Que intensifica o ataque,

Certo do que vai acontecer.

A sua tática de combate

Perfeita e certeira

Nunca falha.

Não pode falhar.

Mas o inesperado que se segue

Ao grito de guerra

Estridente e decidido

que inesperadamente ecoa no ar

bem-te-vi!, bem-te-vi! bem-te-vi!

Pega Golias de surpresa

Até esquece a presa

E para se proteger

Bate em retirada

Voando em disparada

Ligeiro para longe sem destino

Tentando fugir  do pequenino Davi

que atrevido vai célere no seu encalco

e por cima lhe desfecha

uma saraivada de bicadas

com arrojo e coragem

até vê-lo se afastar dali

Bendito Bem-te-vi

 

Eu nunca vi

Mas tem quem diga

Que em algumas vezes Golias

Consegue virar o jogo ao seu favor

Usando das habilidades de predador

De repente da um giro sobre si mesmo

Fica de frente

Pegando o Davi desprevenido

Mas eu não acredito

Eu não quero acreditar

Não seria justo

Golias contar vitória

Se fosse assim

A história não seria eternamente contada

Como exemplo de que nem sempre

O maior é o melhor

Nem sempre sai vencedor.

Que horror!

sexta-feira, 22 de julho de 2011

EFEITO CRACHÁ

Eu queria ficar
O dia todo
Todo dia
Daqui pra la
De la pra cá
Pendurada no teu pescoço
Sem alvoroço ao me conter
Juntinho ao teu peito
Feito um crachá
E achar um jeito
De nunca ter
De me separar
Do teu cheiro
Do teu jeito
De amar

EM ALPHA

Sonhando em sussurrar
Doces palavras ao seu ouvido
Você
Voando baixo
Aterriza em meu corpo
E me cobre de beijos e carícias

Acordo
Quando sua língua ardente
Após explorar o meu umbigo
Inicia a escalada em busca de prazeres
Mais intensos
Que vão crescendo
Até penetrar nas profundezas da caverna
Quente e úmida
De onde jorra o leite e o mel
E explode em júbilo e êxtase
No jato certeiro que molhando a sua boca
Escorre como um rio a caminho do mar
Deixando um rastro de prazer e gozo
no rosto transfigurado
relaxado
que lentamente volta
dos verdes e calmos vales
da terra
um dia prometida
que somente alguns conseguem alcançar.

MAIS UM GOLE

Um gole a mais
Só mais um trago
Tanto faz
É só mais um soluço
Mais um pigarro
Que sai da garganta    
E espanta
O encanto da tarde
Que se esvai
Com a ressaca do mar
Insóbrio
No negror da noite
Que cai.

A CABALÍSTICA DOS NÚMEROS

Antes se pintava o sete
Desenhava o oito
Bordava o nove
Mas como tudo se move
Velozmente
A mente de um notório
Criou a mística do onze
Cão de bronze
Binária face 
Ladrem e mordam
A mão de quem
Com ferro fere e mata
Quem não tem nada com isso
O risco que corre o pau corre o machado
Que  nunca foi achado
E mais um negro setembro
Pra chorar por todo o sempre
E um dois de maio
De triste comemoração

Pura maquinação.

Obs. Modificado em 04 de maio de 2011 após a notícia da suposta morte de Bin Laden.

PORTO SEGURO

Perto de você
Gosto de mar
Cheiro de maresia
Fantasias
A realizar
Seu corpo
Porto para descansar
Porto para zarpar
Parto para mais um dia
De intensas alegrias

Viver e amar.

LUGAR COMUM

Sem querer cair na pieguice
tentando fugir do lugar comum
ela disse: I  love you
é mais chic!
Quem foi que disse, Alice
é a mesmice de sempre
mas, você há de convir
é o que todos mais querem 
e desejam ouvir!

 

UM DESCUIDO

Daqui pra la
De la pra ca
De porta em porta
De mão em mão
La se vão mais de duas horas
De apurriação
De dor
De aflição
Vergonha
Humilhação
Urgência
Emergência
Sem clemência
Paciência
O pé latejando
O peito sangrando
De indignação

Topada maldita
Uma desdita
Da próxima vez
Vê por onde pisa
Realiza

Quem mandou nascer pobre
Pobre não pode adoecer
Topar
Cair
Desfalecer
Melhor morrer de repente
Sem ser gente
Furar  a fila
Enganar a morte
Sem sofrer
Com sorte
Morrer em casa
Na sala conversando
Quem sabe no quarto
Na cama dormindo
Roncando
Sem drama de maca no corredor
Sem chororô

Sem dar vexame na tevê
Pra todo mundo ver
Que horror
Na rua atropelada
Nem pensar
Triste espetáculo
Um corpo estendido no asfalto
Ainda sujeito a assalto
De malandro desalmado
Desassossegado
Se der pra escolher
Melhor morrer de repente
Placidamente
Sem corredor
Sem fila
Sem maca
Sem faca sem facada
Sem bala sem balaço
Num abraço
A sós com os seus
Serena
Calada
Discreta
Anônima
Como sempre viveu.

EXPOSTA À VISITAÇÃO

Deitada
Estirada
Parada
Muda
Calada
Olhos fechados
Mãos entrelaçadas
Longos dedos brancos
Unhas pintadas
Tez lívida  como cera
Esticada
Amarelada
Cor da morte
Ausência de vida
Preparação para a partida
Nos cantos da sala
Ardem velas
Chama tremulante
Vacila ante a cena
Com pena de quem fica

Envolta em panos
Fitas
Rosas
Véus cobrindo o caixão
Espalhadas pelo chão
Coroas de flores
Faixas de diversas cores
Com dizeres
Dedicação

Colocada a tampa
Escuridão
Solidão
Embalada para viagem
Fria gelada
Como o coração de quem fica
Na saudade.

PAPEL COM CAFÉ

Essa mulher que não chega
esse café que não cheira
chega de espera
vai trabalhar
que a vida pulsa
o tempo passa
e não há nada a declarar.

PINGO NOS IS

Era tanto pingo
pra tão poucos is
que até faltou giz
 

O que era doce acabou-se
quem comeu regalou-se
sem final feliz.

O GOLPE DOS QUINZE MINUTINHOS

Assim como quem não quer nada, passeando pelo shopping numa tórrida tarde de um sábado qualquer, resolvi acreditar no inacreditável e quando dei por mim havia caído na tentação do golpe dos 15 minutinhos.

Com tanta coisa pra fazer em casa me deixei levar quase pela mão de uma vendedora muito bem instruída na arte de seduzir e enganar clientes desavisados ou distraídos, para ser mais branda.

E só percebi que havia caído no golpe quando os atraentes 15 minutinhos com que ela me convenceu a fazer um  cartão da loja já eram mais de 45 longos minutos de espera pelo passe mágico que iria me abrir as portas do mundo encantado do palácio do consumismo.

No  vidro espelhado por onde apareciam e sumiam rostos de sorrisos enigmáticos na mágica iniciada com a abordagem da garota, eu só conseguia ver a mim mesma  quase no limite da irritação pelo engodo  em que havia caído e pela impotência  de não poder adentrar a esse mundo de mistério  por trás do vidro espelhado onde era decidido, à minha revelia, o meu destino de consumidora.

Embora já houvesse respondido a todas as inúmeras perguntas e fornecido todos os dados necessários ao processo com os respectivos documentos: contracheque, comprovante de residência, CPF, Registro Geral, nome e telefone de duas pessoas conhecidas (coisa mais sem lógica, se é meu amigo nunca vai me desmentir, portanto o testemunho é tendencioso), o escambau, tive que  responder inúmeras outras vezes a muitas  outras perguntas cretinas das atendentes. Estas no seu ir e vir constante só pra constatar o óbvio sem resolver nada,contribuíam para me deixar ainda mais irritada me sentindo ré em plena Inquisição ou num interrogatório da Gestapo.

Enquanto nos corredores indevassados por trás do vidro espelhado os agentes da burocracia financeira devassavam a minha vida, chafurdavam o meu passado e decidiam o meu futuro como voraz compradora (vide as sacolas cheias de roupas que a essas alturas já carregava como um fardo ou um tesouro e que esperava o passe ser liberado para entrar definitivamente em sua posse) a minha irritação ia crescendo assustadoramente chegando a níveis alarmantes à proporção que a demora aumentava e as respostas lacônicas dos funcionários da loja me indicavam a possibilidade de ser negado o meu pedido por motivos inimagináveis mas que faziam temer o pior.

Ante pensamentos tão sinistros fiquei tentando lembrar-me de algo que eu tivesse deixado de fazer ou que tivesse feito que pudesse manchar a minha reputação ilibada  de compradora e fizesse por merecer tão minuciosa varredura na minha história de consumidora.

Enquanto isso vinham na minha cabeça algumas indagações e inquietações de cunho social claro. De repente eu pensava comigo mesma: Imagina vocês, se eu que tenho emprego fixo, contracheque para comprovar renda e emprego, contas especiais em bancos particular e do governo, residência fixa (coisa que serve até de motivo para um acusado ser solto e responder processo em liberdade), pago altos  impostos, tenho uma renda razoável para a nossa realidade (embora reclame dela todo dia), amigos com telefones para dar boas informações sobre a minha pessoa e confirmar o que os documentos já comprovaram(onde moro, trabalho, estado civil, etc.)  sou obrigada a passar longos e irritantes minutos esperando para ser aprovado o meu crédito e receber o passe desejado para levar aquelas mercadorias para casa...como será que as pessoas que não têm todas essas condições fazem para conseguir crédito? Mistério!!! Pois pelo que eu sei está todo mundo comprando adoidado...celular nem se fala!

E o que dizer dos que não pedem licença...e sem  cerimônia entram e saem com a legitimidade da força e da astúcia?

Coisas que não se consegue explicar mas que vemos acontecer a cada instante. Quem de nós não sabe de algum caso de bandidos disfarçados de gente de bem que burlam na maior astúcia os sistemas mais sofisticados de segurança e de proteção de crédito e dão golpes que vão desde os mais simples aos mais mirabolantes?

De volta à realidade.

Após idas e vindas, perguntas e respostas, consigo sair do impasse e deixo para trás naquela parede de vidro espelhada a imagem exultante de quem venceu uma guerra rumo ao mundo encantado do consumismo...

Enfim, dos males o menor. Ufa! Compras, finalmente, aqui vamos nós..

DOLCE FAR NIENTE

 Ela estava voltando das férias. Completamente fora de forma para encarar o fardo do trabalho, teve dificuldades para assumir de imediato as múltiplas tarefas e se readaptar a cumprir horários rígidos de entrar e sair. Hora para merendar. Tempo limitado para falar ao telefone. Tempo para ir ao banheiro. Tempo para rir. Da até para chorar, se tiver tempo. Chegou se sentindo assim meio deslocada, como um peixe fora d'água, uma estranha no ninho. Precisou de um tempo para se readaptar à escravidão dos horários, pegar pressão, como se diz na gíria.

Passando por tudo isso mais uma vez, parecia que cada vez era pior. Ela então ficou pensando que não deveria ser assim. Algo deveria ser feito para amenizar essa situação. Com aquilo na cabeça, ela tentou trabalhar, se envolver nas coisas da empresa, voltar ao seu ritmo habitual de antes de sair de férias. Mas sentiu dificuldades e, num desses raros momentos de devaneio a que podia se dar ao luxo, que injusto! Pensou que seria bom e necessário que o setor de Recursos Humanos das empresas, os conhecidos e sempre temidos Rhs, implantassem um Serviço de Readaptação ao Trabalho – SRT para   ajudar os funcionários da casa na sua dolorosa volta ao batente, como se costuma dizer por aqui, após trinta dias de gozo das tão merecidas e esperadas férias anuais, pois todos hão de convir que deixar o ócio de um período de nada fare niente,  para suportar oito horas de correria, preocupação, aporrinhação de chefe não é fácil para ninguém. 
                        
Dentro desse espírito, esse serviço, na concepção dela, poderia começar implantando na empresa um período de abstinência moderada voltada para a desintoxicação do organismo do empregado, impregnado de ócio, que não é ópio, mas é como uma droga que vicia fácil.

Poderia começar, por exemplo, pela adoção de um processo de “volta lenta, gradual e restrita” ao trabalho durante um tempo igual ao período gozado, com uma jornada de horários alternativos. Inicialmente com poucas horas que iriam aumentando de forma lenta e progressiva até atingir a carga habitual, pois trinta dias de um dolce fare niente é tempo mais do que suficiente para transformar o operário padrão de antes num perfeito malandro de gafieira.

Seria igualmente interessante, pensou ela, que também fosse adotado, no período de abstinência do ócio, um método de terapia ocupacional que constasse de atividades de lazer intercaladas às horas de trabalho efetivo.

Dessa forma, no período de transição e readaptação só poderiam ser solicitadas ao empregado tarefas leves, sem grandes necessidades de desprendimento de energia e queima excessiva de neurônios. Seria assim como um período de aquecimento, como acontece nos times de futebol antes de entrar em campo. Aquecimento dos músculos e ativação do cérebro.
E um detalhe importante, essas tarefas seriam realizadas em doses homeopáticas nos chamados dias úteis(e por acaso existem dias inúteis?), enquanto as atividades de lazer deveriam ser aplicadas em doses massivas para evitar ou amenizar os efeitos colaterais como causar uma distensão músculo/cerebral, por exemplo, em conseqüência do trabalho árduo sobre o organismo relaxado e desacostumado do retornatário (uma junção de retorno com otário). Um parênteses amigos: esse termo – retornatário - segundo uma amiga minha, é um neologismo. E eu adoro neologismos!

No estágio probatório, o “retornatário” ficaria liberado daquelas enfadonhas, cansativas e babacas reuniões mensais, promovidas pelos RHs a título de nivelamento e integração dos trabalhadores da empresa. Nesse período seriam  também permitidos e até concedidos incentivos monetários e flexibilidade de tempo para que o retornatário possa preencher esse tempo com atividades culturais e de lazer, mais interessantes e mais produtivas.

Durante um tempo maior do que seria considerado normal, ela ainda continuou sonhando com as férias que nem foram tão boas assim...mas não faz mal...férias são sempre férias...nem que seja pra ficar de “pernas pro ar que ninguém é de ferro” (*).

Sem grana e sem companhia, pois nessa maré braba até o namorado dera o fora, com coisas pra resolver em casa (onde é a provedora e gestora única) sem muitas opções, a nossa reformista teve que se contentar com o sofá da sala, um saco de pipocas e uma coca-cola para chorar os dramas alheios, vivenciar a história de amor do par romântico do filme que pegara na locadora mais próxima de casa; assistir à programação da TV, do humor escrachado ao dramalhão mais comovente. Aff! Ninguém merece! pensava ela em seu devaneio.

Ficar em casa de pernas pro ar sem fazer nada é no geral o sonho de todo trabalhador que passa o ano esperando por essas benditas férias enquanto  da duro na empresa todos os demais 335 dias.

Mas quando chegam essas benditas férias geralmente não tem dinheiro pra realizar nem um décimo do que a mente projetou para esses ansiados 30 dias. Viajar. Passear. Visitar a família que mora distante. Amigos que nunca mais viu. Conhecer lugares exóticos e encantadores que viu na televisão. Mas na hora da verdade essa realidade fica cada vez mais distante! Mais um sonho impossível. Mas uma frustração a ser adicionada ao rol das muitas que vem acumulando pela vida afora. E quem vai pagar a conta do analista?

Mas, querendo ser prática, ela tenta dar a volta por cima e usar a sua   capacidade polianesca (olha amiga, parece que temos aqui outro neologismo!) de ver o "lado bom" de tudo o que acontece.

- Pois deixe estar, quem precisa de viagem pra ser feliz!?  Só os estressados e abduzidos pela ideologia vigente acha que férias tem que ser para viajar de qualquer jeito, em qualquer circunstância. Ninguém merece!

Estar de férias, por pior que seja, é sempre melhor do que ficar aturando todo dia chefe chato, saco! Colegas invejosas, fofoqueiras...Queira ou não queira, de um jeito ou de outro a gente acaba sendo alvo delas. Que horror! Como alvo ou como co-autora da fofoca. E no fim ela pipoca e você fica na mira da ira sozinha, e ainda por cima inocente, não mente!. Por isso mesmo voltar a trabalhar não a animou muito. Ainda preferia o sofá, as pipocas, a coca-cola (Ai Deus! Lá se vai o meu regime! Que remorso!) e as lágrimas de emoção pelo drama dos outros!

E tentando justificar para si mesmo quanto ao fato de não ter realizado nenhuma viagem nesses trinta dias, por mais curta que fosse pensava, ainda mantendo uma atitude polianesca, que tinha sido bom, pois assim não correra o risco de cair em algum daqueles casos que todo dia são relatados e que tomamos conhecimento através do noticiário.

Pessoas que embarcaram nas propagandas e promessas enganosas que oferecem pacotes de cruzeiros marítimos que nunca chegam ao destino e ficam encalhados em alto mar. Destinos sonhados e nunca alcançados. Acomodações precárias em pousadas e hotéis que prometem mundos e fundos em seus materiais de divulgação mas na hora agá nada é como dizem os belos folders de propaganda e divulgação. Excursões com programação de tempo sem base real para as mil e uma atividades oferecidas causando atropelos e queima de etapas com passagens tão rápidas pelos eventos e locais de visitação que não da nem para fixar o nome muito menos a história do local. Fica uma leve recordação e uma fotografia tremida, desfocada, sem nome e sem identidade. Fica na saudade!

Imagina, pensava ela querendo justificar, se eu vou correr o risco de ficar abandonada sem lenço sem documento e sem condições até de voltar pra casa em meio a uma excursão pela qual paguei uma nota para ter conforto e segurança! Nem pensar! Ai como é bom o meu sofá!

Enquanto pensava em tudo isso à luz do que estudara nos livros que o partido distribuía e das palestras que assistira na sede do sindicato e como boa estrategista que pensava ser, ia bolando mais uma forma de virar a mesa em cima dos patrões, enquanto pessoa e com a consciência corporativa que desenvolvera ao longo dos seus anos de militância no sindicato.

E lhe veio à mente que era urgente que fosse realizado um trabalho massivo para anular na cabeça do cidadão os efeitos da lavagem cerebral que foi feita ao longo de muitos anos de acomodação que implantou na cabeça do empregado a aceitação, como uma verdade universal e inquestionável, de que o trabalho produtivo deve ser a única fonte de prazer do homem no mundo capitalista em que vivemos e de que “o trabalho dignifica o homem”, seja ele qual for, aliado a um trabalho psicicológico de resgate do laissez faire "deixai fazer, deixai ir, deixar passar". "laissez faire, laissez aller, laissez passer".

Trabalho de superação do sentimento de culpa e do remorso do não fazer nada, do ficar atoa, “...num tal de fazer nada /
como a natureza mandou...”(**). Da leveza de praticar o ócio com liberdade e sem culpa. Por mais que você ache que ele não vá te levar a nada.

E ela então se perguntava: mas quem foi que disse que  as coisas têm sempre que ter um resultado que pode ser medido e pesado? Que tudo tem que resultar em lucro. Que todas as coisas têm que se transformar em produtos e a vida é um mercado onde se pratica o comércio de nossos sonhos e de nossos desejos?

Mas também quem botou na nossa cabeça que só se deve tirar férias se for para viajar?

Dormir tarde. Acordar mais tarde ainda! Aqueleolc dolce far niente do ócio criativo de cada dia, sem culpa e sem pecado, sem obrigação de nada a não ser agradar a si mesmo, satisfazer os desejos mais inconfessos é uma das coisas que se pode “fazer” quando de férias. Coisas difíceis de fazer durante os outros dias. Nem o final de semana, permite esse privilégio aos pobres mortais trabalhadores desse país. No sábado, a partir do meio dia, quando o povão deixa o trabalho e encerra a jornada semanal de trabalho, é aquela correria. Até conseguir chegar em casa (la se vão, no mínimo, uma hora e meia do dia),

Após conseguir vencer a guerra de chegar, muita coisa a espera em casa. Cuidar da casa, fazer supermercado, consertar coisas quebradas em casa tipo trocar lâmpadas queimadas, consertar o ferro de passar roupa com a  resistência queimada, lavar e depois passar a roupa da casa; fazer consertos nas roupas; cuidar um pouco das plantas, dar banho e tosar o cachorro, levar os sapatos velhos parra o conserto a fim de ver se dando um trato ele ainda aguenta um tempo, pois está caro comprar um novo com esse mísero salário que se ganha. Isso e muito mais coisas que ela não lembrou agora.

Ah e o domingo mulher, ta esquecendo pra que foi feito? Para o lazer e o descanso do trabalhador não é? O famoso sétimo dia em que Deus descansou após ter criado cada  um de nós à sua imagem e semelhança e tudo o mais que nos rodeia, não é isso que diz a Bíblia?

Pois é, acontece que por mais que se estique o sábado nunca é suficiente para  fazer tudo o que precisa ser feito...e o jeito então é deixar uma boa parte das coisas para o outro dia. E o outro dia é exatamente o domingo do descanso. E la se foi o descanso pras cucuias.

O tanque lhe espera Alice! Mãos à obra mulher que outra semana de dureza a espera ali bem na esquina. Prepara-te para mais uma rotina de aborrecimentos até o próximo fim de semana de labuta pesada. Vida de operária!

Então o jeito mesmo é deixar o descanso e lazer para as férias. Que venham as tão faladas férias tão esperadas e sempre retardadas.

Mas entretida em elucubrar teorias revolucionárias e traçar planos e metodologia de ação que viessem melhorar a qualidade de vida do trabalhador e que começava assim com uma forma menos traumática e dolorosa de retomada do trabalho na volta das férias, ela nem se deu conta que há um tempo, desde mesmo que voltara das benditas férias, ela virara alvo de uma observação disfarçada mas continua e cuidadosa do chefe de seção.

Mas  ela achava que havia pensado em tudo e que o plano era perfeito e completo, pois pensara até na inclusão de um serviço de apoio psicológico ao retornatário, além de assistência social e jurídica. Pensou inclusive em que seria imprescindível que fosse criado um fundo de assistência ao retardatário com a finalidade de prover as condições pecuniárias para que ele possa aproveitar os horários livres do período provatório em atividades de lazer e cultura como ir ao cinema, museus, clubes, teatro, shows, praia, etc.
 
Mas, como todo plano perfeito o dela também tinha o seu calcanhar de Aquiles. E, infelizmente ela não contou no seu time com a ingênua clarividência de um Garrincha como teve o Feola na seleção brasileira. Assim ela traçou uma estratégia perfeita, mas esqueceu de combinar com os jogadores adversários. E acabou tomando de goleada.

E o chefe de seção, capitão do time adversário, não estava nada satisfeito com o seu desempenho e andava buscando um motivo para despedí-la por justa causa, pois para ele empregado que pensa por si só, que tem idéias próprias é sempre um potencial problema e perigo. O melhor, nesses casos, pensava ele do alto da sua sapiência e de anos de experiência naquela função de que tanto se orgulhava, era cortar o mal pela raiz.

 
 
Ainda por cima, ela ainda sob os efeitos colaterais do ócio resolveu dar uma de espertinha e achar por bem aproveitar aquelas chatas e enfadonhas reuniões promovidas pelo RH para fazer marketing do seu plano de forma a disseminar suas idéias revolucionárias e mirabolantes e assim ganhar novos adeptos.

E cometeu um erro fatal invadindo o espaço sagrado do chefe de seção que já estava até a borda com ela. E como no conceito dos patrões um bom chefe administrativo financeiro é aquele que sabe se fazer odiar pelos empregados ele era tido como o melhor, por aí se pode ter uma idéia do tamanho da encrenca em que ela se meteu!

Aquele palanque era o espaço dele e ele não abria mão disso. O seu palco de toda segunda-feira era sagrado Na sua ingenuidade ela nem se deu conta de que estava pisando num terreno minado que já fora demarcado antes. Bem se vê que ela nunca leu “A arte da Guerra” de SUN TZU e nem desconfia quem seja Maquiavel.

Mas tão enleada ela estava com as suas idéias revolucionárias que não percebeu o quão perto de novas férias ela estava. E do tipo de férias que nenhum empregado gosta de gozar e que pode ter trinta ou muito mais dias, dependendo da qualificação do empregado, da situação do mercado de trabalho e, principalmente, da sorte de cada um.

Ser mandada de volta ao sofá da sala, ás pipocas e à companhia das mentirosas, enfadonhas e repetitivas novelas da televisão brasileira, no início e  por algum tempo lhe pareceu um prêmio. Mas após algum tempo ela vivenciou a experiência inversa – querer pedir férias do ócio e começou a gritar para o mundo ouvir:

Por favor, me ouçam! Eu quero meu trabalho de volta. Mesmo sem férias, décimo terceiro. Sem conceitos marxista, maoista, machista, feminista,,,sem nenhum ista.

Fora todos os “istas”. À vista ou a prazo, eu acato tudo. Mudo de lado. Me abalo até qualquer lugar, enfrento qualquer barra para trabalhar.

Ônibus lotado, apertado. Gente abusada. Cheiro de suor. Calor intenso (mas vou alegre, serelepe). Chefe chato (mas ele é até bonzinho!!!). Colegas falsas e fuxiqueiras, barraqueiras (eta tranqueira!). Comer de marmita barata (pensando bem, isso até me incita ou seria excita?). Trabalho repetitivo (um aperitivo). Assédio moral de superiores (serve pra quebrar o tédio, a monotonia do dia).

Então de repente, sem que ela soubesse explicar como nem porque o saco  cresceu em suas mãos e pipocas gigantes começaram a saltar sobre ela e sufocar a sua garganta. O sofá da sala onde estivera jogada displicentemente assistindo um filmezinho medíocre e enfadonho transformou-se num instante em uma imensa cratera que se abriu e a estava engolindo. A coca-cola de dois litros, por si só já tão gigantesca, transformou-se em uma descomunal e escura cachoeira prestes a afogá-la num mar de espumas caso ela conseguisse se safar do ataque das pipocas gigantes.

Aquele lugar estranho e sufocante  em que de repente se transformara a sua sala de estar onde passava a maior parte do seu tão esperado tempo de ócio parecia estar se rebelando e começava a lhe aprisionar.

Sentindo que aquele ambiente, que antes lhe fora tão familiar passara a lhe ser hostil e agressivo ela começou a se debater para se libertar dos tentáculos com que uma criatura alienígena saída diretamente do filme de ficção científica que ela assistia na televisão lhe puxava para o seu mundo virtual e tenebroso, Mas os seus esforços eram baldados porque ela estava paralisada pelo terror e medo.

Resolveu então pedir ajuda e tentava em vão gritar, mas a voz não lhe saia da garganta sufocada pelas pipocas gigantes que tomavam o seu fôlego impedindo-a de respirar.

Num esforço supremo saiu um socorroooooooooooooooo, me tirem daqui eu quero o meu trabalho de volta. Foi quando aquele odiado e bem familiar trinado estridente a despertou parecendo dizer ei moça, hora de trabalhar, levanta desse sofá sua preguiçosa senão você vai se atrasar.

Ela então, começando a compreender tudo que havia acontecido,  tomou-se de de amor por aquele de quem ela costumava falar mal e que no auge da raiva e da revolta muitas vezes chegara a jogar, solenemente, conta a parede do quarto para lhe fazer calar, ao ponto de se pegar cobrindo aquele despertador velho e ultrapassado com sonoros beijos.

Tudo não passara de um terrível pesadelo, pensou alto e enchendo-se de alegria, meteu os pés da cama e correu para o banheiro apressar a sua toalete matinal.

E enquanto corria apressada para a parada do ônibus mais uma vez atrasada para o trabalho ainda terminando de comer um pão com manteiga que esquentara rapidinho na chapa ao mesmo tempo que tentava arrumar o cabelo, ia lembrando de uma canção do saudoso Gonzaguinha:

“...porque sem o seu trabalho o homem não tem honra
Mas sem a sua honra
Se morre se mata
Não da pra ser feliz
Não dá pra ser feliz
Não da pra ser feliz”
Sem teoria
Sem protesto
Sem pesadelos.
Na real.

Eta menina, desse jeito você não se cria!

Avia, corre pra pegar o trem...que já vem...que já vem....que já vem.
 
Até as próximas férias....


(*) Extraído do Poema "Filosofia" do pernambucano Ascenso Ferreira

(**) Extraído da letra da música "Bom tempo" de autoria do compositor Chico Buarque de Holanda.