sexta-feira, 18 de setembro de 2009

O açúcar que faltou ao pão ou O Pão de Açúcar que pedrou um coração.


A decepção estampada na expressão de incredulidade pegou a todos de surpresa. Até o motorista do táxi que de nada sabia, parecendo compreender o drama e a seriedade daquele momento ímpar, viveu com ela a emoção de um sonho a muito acalentado que se desfazia em lágrimas de desilusão e desconforto.


Era como se o açúcar que faltava ao pão de pedra que se materializava bem ali a sua frente derretera e se transformara em lágrimas salgadas que caiam aos borbotões dos olhos daquela que, por muitos anos, alimentara o sonho de ver de perto o objeto de sua idolatria. E por isso ali naquele momento ela relutava em acreditar que aquele monstro de pedra, feio e sem graça, que a sua patroa e o motorista do táxi teimavam em apontar, fosse o seu idealizado Pão de Açúcar.

De dentro do táxi procurava naquela paisagem nova e impactante para ela, uma saída para manter intacto o seu sonho. Não, não podia ser ela com certeza não estava olhando para onde eles estavam apontando.

A esperança de ver de perto o Pão de Açúcar, que sempre a fascinara e intrigara, era tudo o que ela queria naquela cidade que o povo chama maravilhosa. Fora somente por esse motivo que aceitara o convite da Dona Arly e Seu Marco de vir morar por uns tempos com eles no Rio de Janeiro.

Ela sempre ficava olhando as fotos das revistas e pensando como gostaria de ver de perto um pão daquele tamanho e ainda por cima de açúcar.

Ai! Devia ser mesmo uma belezura! E então crivava a patroa de perguntas sobre aquilo que ela pensava ser a coisa mais interessante do mundo.

Imaginar um pão feito de açúcar daquele tamanho que ela via nas fotografias enquanto tirava a poeira daquela montanha de revistas e livros que encontrava por todos os cantos da casa dos patrões, para ela já era um deleite. Ainda por cima ver de perto, até tocar, quem sabe poder provar um pedaço daquele imenso pão, era bom demais para ser verdade! Pensava ela enquanto teimava em não acreditar no que estava tendo que ver. É dona Arly parece mesmo que alegria de pobre dura pouco! E a dela estava a se desfazer ali ante aquela visão torta.

Visto na revista era lindo demais! E fora por aquela visão idealizada que ela se apaixonara. E era aquilo que ela esperava encontrar. Mas a doce ilusão glacê com que confeitara o morro dos seus sonhos estava agora a se desfazer bem diante dos seus olhos. E isso ela não podia aceitar.

Fora essa ilusão que a impelira a aceitar vir passar uma temporada aqui no Rio, encarar o desconhecido, vencer o medo de avião, aceitar a mudança temporária de vida. E agora ela se sentia traída. Era ruim, pensava ela, aquele morro feio, sem graça ser o meu Pão de Açúcar! Deve haver algum engano! Isso agora já é demais!

Mesmo diante da confirmação da patroa, que a fora pegar no aeroporto a caminho de sua nova casa, e do desavisado e atônito motorista de táxi, que sem querer ajudara a desfazer aquele sonho, ainda relutava em aceitar a dura realidade que para ela parecia o maior dos absurdos e era a maior decepção da sua vida.

Se desfazendo em prantos ante a realidade dos fatos que a obrigaram a enxergar, bem ali a sua frente, com outros olhos o que ela fantasiara em sua imaginação à distância, ela pediu a sua patroa para mandar o táxi dar meia volta e colocá-la dentro de um avião a caminho do seu Ceará de onde nunca devia ter saído!

Agora triste e se sentindo traída voltava para casa trazendo na bagagem, que nem chegou a ser desfeita, um sonho a menos e uma desilusão a mais.

Sem mel nem cabaça, como se diz por aqui. Sem pão e sem açúcar. De volta para o fel da dura realidade que é o seu dia-a-dia na cidade grande.

Que Deus a guarde e conserve.

Amém!


MAIS UMA ILUSÃO


Em meus momentos de solidão
Tenho parado e perguntado ao tempo
Qual contratempo levou você no vento
Pra longe de mim

Lembro então que num instante
Perto ou distante
Em tão pouco tempo
Você ficou em mim

E a única a testemunhar
O meu lamento
E que é meu conforto
A que me agarro
E que me conforta
É o teu rosto numa foto
Gravado a fogo no meu coração.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

BALA PERDIDA

Uma bala perdida

Quem perdeu?
Quem achou?

Quem perdeu
Nunca se sabe

Quem achou
Letícia
Alegria
Tainá
Estrela

Uma bala perdida
Mata a alegria
Apaga a luz
Que piscava no céu
Infinito do amor.

Porque é sábado




E numa tarde de certo sábado de fevereiro de 1977, vendo aquele homem ali ao seu lado, deitado num perfeito relaxamento do corpo, entregue à exaustão do sono no fastio pós-coito ela não pode deixar de recordar um outro dia de fevereiro, há sete anos atrás. Um sábado de aparência comum a todos os sábados em que ela amanheceu com um vexame premonitório, querendo a todo custo ir á praia, como se ela fosse sair do lugar ou o mar fosse secar, na urgência das coisas quando elas precisam acontecer.

E o mais estranho é que nenhuma das suas cinco irmãs tenha querido ir com ela, muito embora em outras ocasiões, quase sempre fossem as primeiras a se candidatar.

Após insistir com todas e escutar de cada uma um sonoro não, mesmo assim não desistiu do seu intento. Alguma coisa parecia lhe dizer que ela precisava ir à praia naquele dia.

O jeito foi apelar para o irmão que por sua vez chamou o primo. Moleques ainda não perdiam oportunidades como essa de saírem do raio de alcance dos olhos perscrutadores dos pais.
E assim se foi o trio caminhando pelas ruas em busca do mar. Pela Avenida Dom Manuel desceram com o sol das dez horas batendo em seus rostos desprotegidos e alegres a caminho do mar. Até lá foi uma boa caminhada que tiraram de letra, sem reclamar. Para os dois moleques tudo era festa pelo caminho. Chutando latas, trocando piparotes, metendo os narizes curiosos em tudo que os olhos alcançavam, rindo de tudo e de nada, na inocência dos seus poucos anos.
Embora sábado e já passando das dez horas da manhã a praia ainda estava quase vazia. Deu para ela sentir um gosto de domínio sobre toda aquela extensão de areia que parecia ferver sob a ação escaldante do sol. Sem a agitação habitual dos fins de semana tinha ares de deserto, um lugar ermo de alguma terra virgem a ser conquistada.
Sentada sozinha ali, pois os garotos já haviam saído por aí a procura de aventuras, ela mal teve tempo de saborear esse gosto de dona da praia por muito tempo. Entregue aos seus devaneios, espichada na toalha procurando a direção do sol para um melhor bronzeamento que mudasse o branco original da sua pele, para desespero dos seus pais, ela viu, e mais que viu ouviu a invasão de freqüentadores que passavam conversando animadamente por trás de sua cabeça.
Ela então pensou que era muito azar seu, com tanto espaço vazio, aquele trio achar de acampar justo a poucos metros de onde estava curtindo a sua solidão!
Tão próximos ficaram que, ajudada pelo vento que soprava a favor, ela podia ouvir tudo o que conversavam eles, os invasores - uma mulher e dois homens grandes – que, aparentemente alheios a tudo que se passava ao redor, comentavam o caso de Dana de Tefé, assunto que dominava então os noticiários das TVs e as páginas dos jornais e dividiam as opiniões pelo Brasil afora.
Para os que não sabem ou não se lembram, Dana de Teffé foi uma milionária tcheca que veio para o Brasil no inicio dos anos 50, depois de passar por vários países, supostamente fugindo do nazismo.
Aqui no Brasil contratou o advogado Leopoldo Heitor, para cuidar de seus interesses financeiros, o qual veio a ser seu amante.
Durante uma viagem dos dois pela Via Dutra, desapareceu e seu corpo nunca mais foi encontrado.
Leonardo Heitor que passaria a ser o principal suspeito do desaparecimento da mulher ficou conhecido então como o “advogado do Diabo”. À polícia ele alegou que teriam sido assaltados e Dana fora seqüestrada. Sem provas foi preso, julgado e condenado, mas fugiu e somente foi recapturado anos mais tarde. O julgamento foi anulado e ele novamente julgado, sendo absolvido. O principal motivo da absolvição foi a falta de provas de sua culpabilidade, pois até a prova material do crime - o corpo, nunca fora encontrado, para se provar o homicídio.
Esse é um exemplo de mais um crime insolúvel no Brasil e desde então se pergunta onde foram parar os ossos de Dana de Tefé. Mas até hoje a pergunta continua sem resposta.
E a história virou uma prévia do que nos anos 1988/1989 passou a ser a coisa mais importante para o brasileiro: achar a resposta para a pergunta que até hoje ainda é lembrada pela maioria dos brasileiros: “Quem matou Odete Roitman?” da trama da Novela Vale Tudo que foi um dos marcos da teledramaturgia do Brasil.
Enquanto isso a loura cabecinha dona de uma bela e longa cabeleira da nossa ex-dona da praia por um instante se perturbava ao cruzar o olhar pela primeira vez com um dos dois homens que compunham o grupo. Perspicaz e arguta, embora com fama de desligada e até mesmo lunática, ela logo percebera que o grupo era formado por um casal e um avulso. E o olhar cruzado, lógico, era avulso. Mas não sabemos por qual motivo ela desconfiava que o avulso pudesse não ser tão avulso assim. Talvez pela altura do rapaz que, segundo a avaliação dela, devia passar de um metro e oitenta. Como o outro homem também. Depois ela viria saber que a semelhança entre os dois homens ia muito além da altura.
Depois daquela primeira cruzada muitos outros olhares aconteceram. Como num jogo de esconde-esconde, cada um querendo disfarçar. Observando o outro na moita, como se diz por aqui. Mudando rapidamente quando pressentia que o outro ia olhar.
E nesse jogo sempre há um momento em que alguém comete um erro de avaliação e é surpreendido. E ela foi quem surpreendeu.
Nesse instante, o adormecido ao se mexer na cama quebrou a concentração do seu pensamento, como reeditando o momento longínquo. Só que dessa vez de forma inversa. Ela não pode deixar de sorrir enquanto respondia com um carinho ao resmungo ininteligível dele ao se revirar na cama inconsciente ainda, procurando uma melhor posição para continuar o sono pesado e profundo.
E ela pode voltar aos seus devaneios...
Estranho que aquele homem ali entregue era o mesmo que ela vira chegar na praia que escolhera por acaso para se bronzear num sábado que se parecia com qualquer outro mas que teve o poder de mudar sua vida.
Como isso pode acontecer? Quem sabe dizer que conjugação de forças concorrem para esses encontros fatais? Que astros ou deuses regem os destinos dos mortais e decidem suas vidas aqui no Planeta Terra?
Porque aquele sábado de troca de olhares não se esgotara em si mesmo?
Ali naquele momento, naquela praia ela nunca poderia desconfiar que outros sábados estivessem por vir!
Tudo não passara de olhares. Olhares descuidados, olhares furtivos, intenção de olhar, fuga de olhares. Troca de olhares.
O sol escaldante e a fome deram o toque de recolher. Recolher a toalha, o bronzeador, vestir a roupa por cima do maiô. Tudo sob os olhares interrogativos e decepcionados lançados em sua direção.
Ela já estava saindo e ainda pode perceber um olhar que parecia de apelo. Mas seguiu firme o seu caminho sem olhar mais para trás.
Com uma rápida e breve referência feita à sua irmã na volta da praia ela pensara ter encerrado esse episódio como algo casual e passageiro que acontece por acaso em nossas vidas. E que não merece mais nenhuma atenção principalmente em se tratando de um homem, que ela tinha a certeza, devia ser casado. E homem casado era um tabu então. O melhor era deixar tudo cair no esquecimento. Além do mais, mesmo que quisesse ou pudesse ela nem sequer sabia como fazer para achá-lo. Tudo não passara de olhares furtivos. E olhares não dão endereços, nem marcam encontros.
Os olhares não, mas o destino sim.
Ela só não podia saber que ele, o destino ou sei lá quem possa ser, o cosmos, os deuses, os astros já estavam mexendo os pausinhos e marcando o reencontro para daqui a dois sábados.
Mais uma vez seus pensamentos foram interrompidos pelo despertar daquele que era o foco das suas recordações.
Como tudo na vida esse momento também não poderia durar para sempre e eis que chega a hora de voltar a dura realidade que havia ficado lá fora quando atravessaram as portas do quarto do motel onde estiveram a tarde toda enleados - corações e corpos unidos pelo mesmo desejo por sete anos contido, reprimido e insatisfeito. Completar um ciclo que enquanto aberto não permitia a nenhum dos dois fechar uma história que teve começo e meio, mas não conseguia ter fim, mesmo depois de ter terminado tantos e tantos sábados atrás.
E enquanto se vestiam para ir embora, ela riu e lembrou de como sem estar de maiô, mas vestindo calça jeans e de cabelos presos por um lenço, ele não a reconheceu imediatamente, quando foram apresentados na calçada da casa dela numa noite de sábado, quinze dias após aquela manhã na praia.
Mas logo em seguida ele lembrou de tudo e, principalmente do jogo de olhares. A chamou de bandida por tê-lo apanhado no flagra quando, parecendo dormir, ela o deixara á vontade para demorar no olhar sobre o seu corpo relaxado ao sol e assim não perceber quando ela, num repente, abre os olhos e se depara com o seu olhar cobiçoso que o deixou sem ação e sem graça. Só restando então desviar a vista com cara de cachorro que lambeu sabão.
Mas também, como vingança, confessou que assistira de camarote quando distraída enquanto conversava com uma conhecida ao tomar banho no mar não percebeu a onda que, quebrando em cima dela, a jogou para longe bolando em meio a espuma e areia.
E perceberam assim, de descoberta em descoberta, que mesmo antes de saberem quem eram são já tinham um passado, uma história, coisas pra contar e relembrar.
“Eu você nós dois já temos um passado meu amor”.
E cada sábado daí pra frente e por certo tempo foi de muita praia e mar até o sábado mais triste de sua vida quando ela percebeu que ele se fora na tarde para não mais voltar quando sumiu na curva da rua de onde  tantas vezes ela o vira chegar para namorar.
Já na casa da amiga, onde estava hospedada e onde ele a deixara depois da tarde de amor, seu “estado de graça” a todos contagiou com a leveza e encantamento pelo momento mágico que acabara de viver. A sensação que ela estava sentindo é que um ciclo acabara de ser fechado.
E então dormiu com a sensação de paz e tranqüilidade de quem viveu o que tinha de ser vivido numa história que agora tem começo, meio e...
The End

domingo, 13 de setembro de 2009

Na vida real

O medo que me tolhe
É o mesmo que me move
Na sua direção
“Viver é preciso”
Pra não morrer jovem
Na contramão
Se um vendaval me colhe
E o fogo explode
Na casa da paixão
Eu perco o juízo
Provoco desordem
Pra ganhar sua atenção
Mas se o amor me acolhe
Me embala e me aquece
Bem no fundo do coração
Esse é o motivo
Pra espantar o fantasma
Da solidão.

(IN)CORPORAÇÃO


A história da humanidade
É feita
Essencialmente
De descobertas
Descobriu-se o fogo
Descobriu-se a roda
E isso libertou o homem da escuridão
E com isso o homem venceu a distância e o tempo

No dia-a-dia
Cada um de nós
Constrói a sua própria história
Na descoberta de si, do mundo, do outro.
A incorporação
Das histórias de muitas vidas
À nossa história particular
Forma uma história comum
Muito mais bonita e rica
De amor
De emoção
É assim que o homem
Vence o medo da solidão!

Magia e beleza





Vendo a lua
Brincando de esconde-esconde
Com as nuvens
Sumindo e aparecendo
Nas curvas da estrada
Brilhando sobre as cidades
Prateando os campos
Por onde vou passando

Penso em você
Ali comigo
Sentindo a força daquele
Momento mágico...

UM CANTO DE AMOR E SAUDADE PARA IRACEMA DAS NOITES DE BOEMIA

O poema a seguir é, antes de tudo, um brado de amor à Iracema, um grito de alerta, um ai, um alento. Um canto de saudade por tudo o que já foi destruído no bairro. Um alerta para que tudo o que sobreviveu no tempo, pelo abandono e esquecimento, não venha a ser atropelado pela ação incontida da ganância. Um alento, pois Iracema sobreviverá a tudo e renascerá para um novo tempo de glória e prazer.

Para quem, que corno nós, ama a Praia de Iracema porque viveu suas brancas noites de luar. Suas verdes tardes de tanto mar, tanto mar... Adorou seus vermelhos entardecer na ponte metálica.
Para quem, que como nós outros, congelou o tempo no ardor das conversas no espaço aberto entre cada gole. Passeou morna preguiça pelas Tabajaras, Arariús, Groaíras na calma das velhas calçadas de pedra. Não dá para falar sobre Iracema sem paixão, sem estar "apaixonado" em todo o sentido gramsciano da palavra: o de "colocar-se numa posição e, mediante essa colocação e por causa dela, tentar entender uma tragédia".

Foi com esse espírito que entendemos a tragédia que ameaçou se abater sobre Iracema pela derrubada de suas relíquias, pelo aniquilamento de sua memória e, sobretudo, pelo flagrante desrespeito ao seu passado e à sua gente.

Gente que, apesar de ali morar, viver, trabalhar e amar, não foi, em momento algum do processo, consultada sobre o seu próprio destino. Gente que é o motivo mesmo desse poema.

E foi pois junto a essa gente mista de todas as "raças" e "nações" que fomos buscar, na riqueza cromática de suas vidas, a legitimação para as nossas elucubrações teóricas paridas na mesa das bibliotecas e a inspiração para as nossas tiradas metafóricas. "PRESERVAR É PRECISO" pixado em muros e calçadas seria uma palavra de ordem, um indício de resposta? Povo unido em associação? Consciente e ferido? Revoltado e apreensivo? Descrente e desiludido?

Fizemos nossa essa investigação e aqui estão registrados os resultados do contato com essa gente que não se limita, que não se restringe, que não se confina nos limites físicos do bairro, mas está ou se encontra sempre, a qualquer hora, em suas ruas, em seus bares, em suas praias, nas suas calçadas, nas pontes, vinda dos mais variados cantos da cidade, do país, do mundo, atraída pela sua fama tão cantada em verso e em prosa pelos seus amantes mais ardorosos, extasiados ante suas belezas naturais já não tão naturais assim mas mesmo assim ainda belas. Envolvida pela aura que perpassa o ar que ali se respira. Encantada pela magia que há nos mistérios que parece esconder cada canto. E vem como quem vem em busca da paz perdida. Da tranqüilidade roubada pelo "stress" da vida na metrópole. Como se o bairro não fizesse parte dela e ao transpor o asfalto na direção do mar retornasse ao “tempo dos quintais”.

Essa gente foi, durante algum tempo, importunada por nós em seus lares. Abordada nas ruas. Nos bares. Calçadas. Na praia. No trabalho. Com perguntas sobre suas vidas. Seus hábitos. Seus desejos. Suas opiniões. Dando entrevistas. Respondendo questionários. Sempre num clima de tranqüilidade e confiança. Sem afobamento. Sem pressa. Sem documentos. Sem estranheza. Assim, naturalmente. Como se fosse natural a gente estar ali. Como se no fundo soubesse que viríamos e estivesse à nossa espera. Com sorrisos. Cafezinhos. E o doce-em-calda feito em casa guardado na compoteira para essas ocasiões. Tudo exatamente como manda a tradição.

Tradição e história que percorriam as ruas do bairro, da Rui Barbosa a Almirante Tamandaré. Da praia à Monsenhor Tabosa. Hoje, perseguidas pela modernidade, encontram-se acuadas e ameaçadas no perímetro compreendido pelas ruas João Cordeiro, Almirante Barroso, Caririrs e o mar que, por ser o último reduto que ainda guarda, no conjunto, o clima e a paisagem da época, foi por nós considerado, para efeito desse poema, a Praia de Iracema ou simplesmente e, carinhosamente, Iracema.

O que foi escrito não se restringe ao processo de destruição do bairro e que se desenvolveu bem às nossas vistas e às vistas de toda uma cidade que às vezes se faz cega para não ver e não vendo não ser obrigada a se posicionar e assim não ter que agir.

Processo de destruição dessa tradição para no seu lugar ser implantado o novo, moderno e duvidoso. O bairro, para nós, não é simplesmente um objeto de investigação. É uma causa, uma paixão. E como paixão merece cuidado e ação.

Ação contra o poder destruidor das coisas belas. E essa é a ação que nos cabe encetar contra o "monstro da lagoa". Esse é o objetivo desse poema: tentar ser uma força, mais uma força, por menor que seja, porém mais uma a se somar às outras na luta contra a destruição da Praia de Iracema que teve início há muito tempo pela ação do mar, que o homem tentou domar e só conseguiu enfurecer e que, agora a ganância desenfreada de homens poderosos quer completar.

Para ser uma força o poema deveria ser mais que uma elegia. Seria fácil fazer um poema ao mesmo tempo terno e triste sobre Iracema. Afinal há muita tristeza em quem fala de Iracema ameaçada de morte. Há muita ternura ao evocar sua lembrança. Também não é hora ainda de escrever um réquiem. Ainda há tempo para arregaçar as mangas e lutar para que ela não morra. Chamar o médico. Chamar o pronto socorro, que venham as ambulâncias. Que se tente de tudo contra o mal que a ataca de forma tão mortal. Se nada disso der jeito, apelar para as infusões, beberagens, chás de ervas caseiras. Essa cura terá que vir do povo com a sabedoria que ele sempre tem. Do povo do bairro: povo que mora. Do povo de outros bairros. De outras cidades. De outros estados. De outros países. De outros mundos. Povo que usa e abusa. Povo que trabalha. Povo que ama. Povo que explora. Povo que adora. Povo que curte.

De que é feito afinal essa Iracema tão cantada? Como é o seu visual tão belo e formoso? De que barro é feito seu chão? De que cor é seu céu? Que ventos sopram pro lado de lá? Que elementos formam a sua natureza de tantas raças e nações? Que sangue corre em suas veias que a faz tão "caliente"?

Que é Iracema antes de ser casas, pontes, ruas, pousadas, escritórios, bares, restaurantes?

Iracema, antes de tudo, é mar. Pedaço de oceano onde tudo começou. Mar que atraiu os primeiros aventureiros para os seus domínios. Mar que atrai. Mar que alimenta. Mar que manso encanta. Mar que na fúria da ressaca assusta, espanta e é capaz de destruir.

Iracema de destino traçado pelo mar. Iracema de destino ligado ao mar. Iracema de mar e de lua. Combinação que faz os poetas e imortaliza o seu nome.

Mar e lua que abençoaram os então concorridos "passeios ao luar".

Lua e mar que hoje fazem a alegria dos "velhos marinheiros" viajantes da noite.

Mar e lua que atraem de muito longe os teus curtidores eventuais, teus habitantes temporários, teus adoradores circunstanciais.

Iracema é sol. Sol de todas as estações. Sol que dá o tom do verde do seu mar. Sol que dá o tom da sua pele morena.

Iracema que já foi coqueiros. Coqueiros que faziam o contraponto à horizontalidade predominante da paisagem marcada pelo mar. Coqueiros que deram lugar a postes, antenas de tvs, espigões.

O que hoje é Iracema, não faz um século, engatinhava na areia de um pedaço de litoral sombreado de coqueiros.

Nomes, teve muitos, até ser batizada Iracema, nas colunas dos jornais.

Iracema, primeiro Grauçá, nome emprestado de um molusco - um caranguejo brancacento - sarará.

Iracema das âncoras descendo ao fundo. Das redes varando as águas. Da espera em alto mar.
Praia do Peixe.

Iracema que teve por brinquedo a tarrafa. Por diversão velejar. Por cartilha os astros. Por ocupação pescar. Bairro dos Pescadores.

Iracema das velas pontilhando o horizonte. Das redes secando nas cercas. Das jangadas a espera de mar. Porto das jangadas.

Iracema de um tempo marítimo determinado por ventos e marés.
Um tempo de maresia perdido num tempo branco.

Tempo branco de Fortaleza, de começo de século, começando a despontar. Tempo das Trading Company. Fortaleza preocupada em exportar.

Tempo de vapor e de composição.

Tempo branco ligando o sertão ao além-mar.

Tempo dos navios ancorados em alto mar. Dos "catraeiros" cansados. Dos estrupícios para embarcar.

Fortaleza descendo o outeiro em direção à praia.

Fortaleza invadindo o domínio das jangadas a procura de um novo local para aportar. Fortaleza da ponte metálica - solução precária e conciliatória.

Ponte, passarela da elegância de Fortaleza começando a reinar. Ponte. Escadas. Catraias. Navios. Pessoas e cargas na aventura de embarcar.

Vivia-se um tempo mercantil determinado por cotações e taxas de câmbio. Tempo de mar e trilhos.Trilhos urbanos. Bondes humanos.

Mar caminho do infinito.
Mar da chegada. Mar da ida. Mar da volta.
Mar de olhar pela janela. Mar de não passar da porta.
Mar do peixe. Mar da isca. Mar da vela. Mar da costa.
Mar distante. Admirado. Temido. Desconhecido a quem não se permite intimidades.
Mar do navio de muitos calados. Do negócio. Do dono. Do sócio.
Mar da paz. Da guerra. Da batalha. Da festa. Do jogo. Do ócio.

E vivia Iracema (n)a estranheza da fama e do abandono. Da tradição ao esquecimento. Entre lixos acumulados nos pés das calçadas e sons de mar e canto que se confundem ao luar.
Do luar e do canto sabem os boêmios e poetas.
Contra o lixo, as águas estagnadas, os calçamentos desfeitos, as casas em ruínas, os entulhos nos terrenos baldios, os esgotos clandestinos, protestam e lutam os moradores.
Do alto dos organogramas oficiais homens públicos apregoam suas boas intenções. Prometem. Aumentam a descrença dos homens comuns habitantes desse planeta de mar e lua.

Homens comuns que viram o bairro nascer e tomar forma. Pioneiros.
Homens que nasceram com ele e nunca o abandonaram. Nativos.
Homens. Tantos homens de tantas raças e nações que dele fizeram a sua pátria. Forasteiros.
Homens outros, passageiros de estações, que o procuram atraídos pelo seu passado de lendas. Peregrinos.
Homens que falam tristezas e saudade de outras manhãs. Que traduzem a história em sorrisos nostálgicos, olhares enigmáticos, dando aos fatos grandezas épicas. Patriarcas.
Homens que choram em versos suas tragédias. Que exaltam em prosa suas belezas. Cantam em doces melodias o seu nome. Poetas.
Homens que escutam, pressentem a algaravia dos novos tempos, dão contornos nítidos ao intangível. Profetas.
Homens que vagueiam e não se prendem à terra, mas que sempre estão de volta ao tempo perdido. Ciganos.
Homens a espreita de ganhos e lucros. Mercenários.
Homens do dia-a-dia de belezas e incertezas. Aventureiros.

Incertos os homens comuns no tempo que há de vir. Apreensivos percrutam o céu a procura de sinais. Prenúncios de turbulência.

Zelosos homens públicos tentam mudar o que está escrito nos livros dos doutores da lei. Pressurosos facilitam a invasão. O troar das picaretas abafa os violões. Desmoronam ícones. Prepara-se o terreno para o tempo de novos ídolos. Ídolos de uma nação de gentios. Estrangeiros abrindo novas fronteiras.
Expulsos, os antigos marcham rumo ao desconhecido.
Outros tempos. Outros hábitos. Outra gente.

O bairro se espreguiça ao longo da praia. O casario se espraia ao solo acompanhando a horizontalidade do mar que lhe serve de cenário, e as leves ondulações do perfil são edificações, que não ousam quebrar, em altura, o ritmo das marés mais violentas. Só mesmo a linha tênue e vertical dos coqueiros num contraponto a essa ondulação.
Um risco de nanquim. Uma pincelada de guache. Composição no ar.
Argamassa, tintas, tijolos - paredes.
Vidros multicoloridos, ferros-fundidos - vitrais.
Portas, janelas, balcões - fachadas.
Caibros, ripas, telhas, telhados, manchas avermelhadas, galos e quintais.

Casas e casas. Chalés. Ainda hoje guardam lembranças.
Casas e casas. Bangalôs. Hoje desbotados. Quase ruínas.
Casas outras só pressentidas em linhas que rumam e se escondem por detrás de formas quadradas e agressivas.
Casas, tantas casas cinzentas e nebulosas. Quem as pode pressentir! Para descobri-las só mesmo a teimosia e a sensibilidade
Casas que se sucedem ombros colados. Outras, num chega para lá, cismam solitárias em seus domínios.
Casas que olham de perto as outras à sua frente, em ruas que só ligam, nunca separam. Não separam casas. Não separam homens. Não confinam crianças. Não favorecem o carro, apenas o toleram, o disciplinam, o contêm, em sua pouca largura. Nas pedras irregulares que compõem seu chão e que não o estimulam a correr. Na paisagem que o convida a passear.
Ruas que acompanham o mar. Ruas que vão dar no mar.
Ruas que nascem no bairro e morrem com ele.
Bairro rasgado ao meio pela violência das "cirurgias urbanas" reclamadas pela urbanização.

Iracema pedaço do bairro onde não se chega por acaso, mas que se procura se busca e se acha e se chega e não se quer deixar.
Iracema da Tabajaras, espinha dorsal onde tudo se articula.
Iracema da Groaíras tímida e recatada.
Da Cariris que adentra ao mar.
Da Potiguaras beco sem saída
Da Guanacés tão estreita e reservada.
Da Alegre que termina antes mesmo de começar.
Da Arariús limite de fronteira interna.

Iracema dos terrenos baldios de todos os usos e de uso nenhum.
Iracema dos terrenos guardados para especular.
Iracema das praias cantadas e poluídas.
Iracema verde só de mar.
Iracema dos esgotos clandestinos. Das águas que não têm como escoar.
Iracema que não vive só de beleza.
Iracema que o Governo esqueceu e a especulação acaba de encontrar.
Iracema de futuro incerto e presente ameaçado.

Iracema família. Iracema boêmia. Iracema trabalhadora.
Feições diversificadas que se permitem, que se adequam e, às vezes, se chocam, mas que normalmente convivem em harmonia pela flexibilidade de sua forma peculiar de vida.
Iracema família que ainda cultiva roseirais e não dispensa os quintais.
Iracema família que ainda se espanta com porteiros e elevadores.
Iracema que pressionada pela crise mora e trabalha no mesmo lote.
Iracema boêmia que empresta seu solo ao lazer de todos os gostos e idades. Nos bares ou nas pontes que adentram ao mar. Nas praias e nos banhos de mar. Nos recantos a namorar. No calçadão a desfilar.
Iracema que atrai e acolhe os que trabalham na calma de quem não tem patrão ou relógio.
Iracema das casas que se transformam em bares. Dos bares que são derrubados para dar lugar a edifícios de dezoito andares. Das edificações que dormem residências acordam escritórios. Amanhecem escritórios. Anoitecem pousadas.

Iracema paraíso da indústria hoteleira. Do Brisa da Praia. Do Hotel Jangadeiro. Da Pousada Turismo. Do Turismo Praia Hotel. Do velho Hotel Pacajús. Do Tradicional Iracema Plaza.

Casas de pais presentes e zelosos.
Casas sem donos largadas na orfandade.
Casas de pais adotivos que cuidam, mas não decidem os seus destinos.
Casas de pais padrastos que mesmo perto não se desvelam em cuidados.
Casas enjeitadas que acolhe enjeitados.
Casas e casas.
Até quando?


Praia. Mar. Areia. Céu. Lua. Sol. Horizonte. Zenital.
Elementos em composição. Cenário natural. Objetos de contemplação.

Casas. Ruas. Pontes. Bares. Pousadas. Hoteis. Janelas. Quintais.
Elementos em transformação. Testemunhos da história. Cenários em ebulição.

Homens. Mulheres. Crianças. Moços. Velhos. Moças. Vestais.
Agentes da transformação. Protagonistas dos fatos. Donos da emoção.

Praia de Iracema. Síntese de todos os elementos.
Palco e arena dos dramas da vida e das batalhas do dia-a-dia.

Iracema. Intérprete de mil faces. Mil gente.
Iracema criança inda ontem a correr pelas ruas em folguedos. Hoje, expulsa das calçadas, espia o mundo por entre grades de janelas e portões. Protegidas do Perigo. Esperança de futuro. Certeza de vida.
Iracema das encruzilhadas do trânsito. "pastoradoras" de carros. Cheiradoras de cola. Pequenas aprendizes das artimanhas das ruas. Refugiadas dos cortiços mal vestidos. Órfãs do mundo. Soltas na noite. Desgarradas da vida.
Iracema mulher de vocação boêmia. De Luz DeI Fuego de histórica passagem. Das "Coca-Colas' prenhes de saudade. Das vozes femininas varando as noites em viagens siderais. Estrelas da noite. Artistas da vida.
Iracema mulher de tradição de luta. Articuladora da resistência. Mulher que dá plantão. Mulher que passa. Que amamenta. Mulher que ama. Se cansa. Se agasta. Sonha. Se frustra. Chora. Se basta. Sustentáculos de todas as barras. Construtoras da vida.
Iracema que adora o sol na ponte metálica. Castiga nas ondas. Colore as manhãs de muita luz. Descola gatinhas no calçadão. Barbariza no breack. Arrasa no fliperama. Dribla na quadra. Craques das peladas e da vida
Iracema de cadeiras nas calçadas em prosa com vizinhos e parentes. Que troca informações e favores. Guardiãs da moral e dos bons costumes. Observadoras do mundo. Contraladoras da vida.
Iracema mendiga de pão e de afeto. Que chora misérias em cada porta. Que cata migalhas nas coxias. Que veste trapos e anda descalça. Desamparadas da sorte. Exiladas da vida.
Iracema apressada atrás da condução. Que tem medo de perder o emprego. Que vive atolada em dívidas. Escrava do cartão de crédito e das "suaves prestações mensais". Iracema dos planos desfeitos. Das férias em casa. Das viagens sempre adiadas. Da eterna espectativa de aumento. Da rígida contabilidade doméstica. Do décimo terceiro de muitas destinações. Da contagem regressiva para a aposentadoria. Escravas do ponto. Malabaristas da vida.
Iracema que perambula pelas ruas em ociosos devaneios. Que amanhece nos bares. Anoitece nas praias. Cidadãs da noite. Curtidoras da vida.
Iracema de pasta e gravata. "Sério por trás de óculos e bigodes". Sempre às voltas com números. Investimentos. Taxas de juros. Viagens de negócios. Inflação. Eleição. Especuladoras do futuro. Programadoras da vida.
Iracema que habita. Mora. Se esconde por trás de muros e grades. Protegida por cães de guarda e porteiros eletrônicos das vistas e da cobiça dos passantes e curiosos. Herdeiras da fortuna. Prisioneiras da vida.
Iracema sossego do dominó nas calçadas. Do encontro marcado com as tardes do Getúlio. Compromissadas com peixes e linha. Aposentadas da lida e da vida.
Iracema que se abriga. Se asila. Se amontoa em barracos de papelão e madeira. Que divide, em velhos sobrados abandonados, dores, alegrias e intimidades com tantos outros de igual destino. Passageiras da chuva. Desabrigadas da vida.
Iracema artista que faz dos muros telas imensas e belas. Artistas da vida.
Iracema das venezianas. Das intimidades pressentidas. Na tua pele Fortaleza vem buscar prazer e liberdade. Nos teus olhos beleza e tranqüilidade. Nas tuas formas memória e identidade.

Fortaleza que procura em ti inspiração para os seus poetas.
Fortaleza que comercializa tuas noites em tantos bares, tantos clubes que confirmaram no tempo tua vocação boêmia. Do Ramon tragado pelo mar. Do Estoril de eterna presença. Resistência e referência. Palco de tantos acontecimentos históricos. Vila Morena. Clube dos Oficiais Americanos da II Grande Guerra. Do Lido de respeitável passado e polêmico fim. Do Jangada Clube orgulhoso de tantos visitantes famosos. Hoje só escombro. De tantos outros de igual destino.
Fortaleza que se cala em muda adoração a cada vermelho entardecer na ponte metálica.
Fortaleza boêmia que acorre a teus bares e botecos. Que canta a tua noite. Que confidencia em tuas mesas. Embebeda emoções. Entusiasmada vomita certezas duvidosas.
Fortaleza que procura na tua exuberância fugir da frieza dos paredões de "cimento e lágrimas".
Fortaleza que procura nas tuas ruas estreitas e irregulares quebrar a monótona rigidez do traçado ortogonal e a anônima rapidez das grandes artérias.
Fortaleza que pisa tuas calçadas de pedra para fugir da aridez dos tapetes de asfalto, negros e quentes.
Fortaleza que usa teu nome para angariar prestígio e divisa.
Fortaleza que procura na originalidade dos nomes indígenas de tuas ruas matar a saudade dos belos nomes dos seus antigos boulevards.
Fortaleza estressada que procura em ti a calma e a mansidão perdidas na pressa e na violência do novo.
Fortaleza interesseira que só lembra de ti para te sugar e te usufruir. Que deixa, a ti, esquecida e abandonada no tempo. Exaurida descobre, em ti, fronteiras a desvendar. Terras a colonizar. Espaços a (re)ocupar. Potenciais a explorar. Lucros a contabilizar.

Fortaleza. Iracema não te quer mãe cruel, loba faminta, que devora os próprios filhos na voragem do poder e da glória. Iracema não quer os teus modos. A tua feição. Iracema quer respeito.

Que não violentes seus filhos.
Que não estradites sua gente.
Que não demulas seus ícones.
Que não ultrajes seus deuses.
Que não profanes seus templos.
Que não ridicularizes suas crenças.

Iracema quer cuidados
Iracema em suas mil faces. Mil gente. Assim pensa. Assim quer
Que assim seja.

E os anjos disseram amém.
Iracema sobreviveu a tudo e renasceu para um tempo de glória e prazer.
Um novo templo. Um novo monumento. Um novo explendor.

Iracema mudou.

Mudou de cara. Mudou de roupa. Mudou de cor.
Mudou de som. Mudou de voz. Mudou de cantor.
Mudou de gosto. Mudou de tempero. Mudou de sabor.
Mudou de gente. Mudou de amigo. Mudou de amor.
Mudou de casa. Mudou de janela. Mudou de visor.
Mudou de rítmo. Mudou de escala. Mudou de valor.
Mudou de luzes. Mudou de tom. Mudou de refletor.
Mudou de tempo. Mudou de clima. Mudou de calor.
Mudou de crença. Mudou de altar. Mudou de fervor.
Mudou de tema. Mudou de prosa. Mudou de humor

E agora por onde anda Iracema da noite. Do dia. Da hora. Do espaço.
O que pode ser feito para trazê-la de volta no tempo desses anos de solidão?

Que é feito desses personagens
Desses espaços em constante mutação?
Que é dos bares que foram adotados
Para segunda moradia?
Refúgio nas noites de solidão
Encontro de idéias varando a madrugada

Que é feito das casas geminadas
Das cadeiras nas calçadas
Das janelas
Das sacadas

Iracema de destino polêmico e incerto
Fadada ao abandono.
Por onde anda sua gente
De tantas tribos diferentes
Que vivia alegre pelas ruas, calçadas.
Portas e janelas escancaradas
Na doce convivência de vizinhos
Se eu adivinho!

Expulsão da gente nativa
Invasão de gente estranha
Que não sabe do seu valor
Só pensa no lucro fácil
Na concorrência
E promoveu o começo do seu fim

Iracema passou da calmaria das letárgicas noites de lua e estrelas
Dos cantos dolentes varando as madrugadas
Ás pelejas estridentes pelas calçadas

Dos carros que passeavam
Apreciando a beleza das suas casas
Em sintonia com o sossego de suas vidas
À irracionalidade das buzinas e roncos estridentes
Disputando ruas e calçadas
Com pedestres
Freqüentadores notívagos
Assustando boêmios desavisados 
Que despreocupados peregrinavam de bar em bar
Numa confraternização etílica fraternal.
Que mal há nisso?

Eles pressentiam e procuravam 
Salvar Iracema da destruição
Que fatalmente aconteceria
E trazer de volta a sua magia
E sofriam vendo a sua iminente destruição

Iracema que tanto atraía
Transtornada expulsou quem a amou de verdade
Para viver o doce engano das noites
De desenfreada euforia
De uma gente estranha
Que chega e vai sem compromisso
Deixando o risco para quem fica no abandono
Cão sem dono jogado na sarjeta

Agora é urgente mudar
Mais mudanças à vista
Por mais que exista boa vontade em promover reformas
Tem que pensar de que forma vai ficar
Se deixar que novamente aconteça
Em nome de uma imagem
Apregoada e vendida
Como marketing da liberdade
Total e irrestrita
Por mais forte que seja
Iracema não resistirá a uma nova destruição
Preste atenção!

Quem fica aqui sofre vendo
Com que voracidade
Chegam vindo de qualquer canto
Só pensando em se divertir a qualquer preço
De qualquer jeito
A todo custo
Sem limites e sem susto
Sem regras e sem protocolos
E vão embora impunemente
Sem respeitar a vida do lugar
Só deixando em seu rastro
Desgraça e destruição da cultura local
Foi mal!

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

CENA ROUBADA


Às vezes eu tenho a impressão
Que a vida me pregou uma peça

escreveu o texto
escolheu o teatro
montou os cenários
cuidou da iluminação
fez a divulgação
escalou o elenco
me reservou o papel principal

Depois...
Achou que não valia a pena
E nunca me deu a deixa
Para eu entrar em cena.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Neve York ou A neve que derreteu um coração empedernido.

Quando vi a minha amiga disfarçadamente enxugar, com as costas da mão, uma lágrima furtiva que teimava em rolar pelo seu rosto enquanto ela, visivelmente emocionada, nos relatava uma cena inesperada que vivenciara certa vez durante uma viagem a Nova York, tive a verdadeira dimensão do quanto o que acontecera havia sido marcante em sua vida.
Se ela que é tida e até se auto-define como uma pessoa prática e realista, que consegue ver as coisas com o distanciamento prudente e necessário a cada situação e até com uma certa frieza, capaz de conter as emoções em situações de conflito, principalmente em público, chegou às lágrimas é que realmente o fato continha uma alta carga emocional.
Sinal de que ela soube ver além das convenções sociais e descobrir naquela mulher prostrada em adoração e quase êxtase perante um fenômeno da natureza que até então, só havia visto através de fotografias ou filmes, o potencial que o ser humano tem de surpreender até mesmo a quem pensava já ter visto tudo e, portanto não acreditava que isso pudesse voltar a acontecer a essa altura da vida.

Enquanto algumas pessoas da família, incluindo aí a filha, tentavam disfarçar a vergonha pelo que qualificavam um mico imperdoável e sem tamanho, equivalente a passar atestado de primeira vez, de novo rico, de brega, cafona, ridículo, etc. face ao seu deslumbramento, minha amiga, alheia ao que isso estava significando para as outras pessoas, preferiu se fixar no que estava assistindo e procurar entender aquela emoção como um manifesto de um ser perante o inusitado, num confronto com as penúrias e limitações que haviam povoado o seu mundo de criança.
O choque produzido por esse confronto parece ter sido grande demais e a mulher não conseguiu conter a avalanche de sentimentos que foi desencadeada a partir daí. Foi quando a necessidade de externar o que sentia no peito e o que lhe estava passando pela cabeça falou mais alto e ela deixou que escapasse da garganta, num grito de desabafo, o que não queria calar e deu vazão a todas as emoções que, numa espécie de catarse, foram sendo despejadas como cascata a jorrar sem controle, aos borbotões pegando a todos de surpresa e despertando em cada um, de modo particular e no conjunto das pessoas que com ela faziam a mesma viagem, as mais variadas manifestações.
De forma que ela pisando pela primeira vez aquele branco dos seus mais acalantados sonhos, esquecendo por um momento onde estava, com quem estava e tudo que sempre abominara em termos de comportamento, ajoelhou-se diante daquela chuva diferente que caia do céu diretamente sobre a sua cabeça, e passou a aparar a neve com as mãos trêmulas e com a emoção de quem parece não acreditar no que vê e quer provar se é mesmo verdadeiro e não um mero truque da tecnologia usada em alguns lugares para dar ares de inverno americano aos Natais dos Shopping Center da vida.
E assim como ébria, uma criança diante do seu mais esperado brinquedo, ela apalpava a neve que caia querendo testar a sua textura; levava à boca querendo sentir o gosto; esfregava no rosto como procurando sentir a temperatura do poder daquele símbolo de um mundo de glamour tão inatingível que sempre admirara e que por estranhos desígnios se abria a sua frente de forma tão surpreendente.
Fez tudo isso em uma espécie de transe, mesclando choro com riso nervoso, enquanto ia falando coisas ininteligíveis e sem sequência lógica, mas com tanta verdade que dava pra entender que tinha a ver com tudo que ela vivera e que, como num filme ia passando pela sua cabeça.
Num misto de desespero e euforia estendia para os presentes as mãos de onde a neve derretendo escorria pelos dedos. A essas alturas a platéia já havia sido acrescida de muitos curiosos, que passando pela rua onde o ônibus havia parado, assistia admirada aquele espetáculo emocionante de uma pessoa em contato com o seu sonho real. E ela não se contendo mostrava a neve enquanto gritava entre os soluços entrecortados: Neve York...e repetia incessantemente Neve York, Neve York, Neve York, como querendo mostrar a todos que o seu ingresso nesse mundo de sonhos que representa o culto ao ter, Meca do consumismo, da competição acirrada e da busca incessante do sucesso como garantia de reconhecimento e de qualidade de vida, já era uma realidade.

Eu consegui! Parecia querer dizer. Eu consegui. Eu sou aquela que em criança tivera para calçar apenas dois pares de sapatos, roupas simples, muitas vezes fruto de doações de pessoas caridosas - sapatos rotos, meias furadas, roupas desbotadas! E olha onde estou agora aqui em Neve York, em plena capital do mundo!

Emocionada, minha amiga dizia não esquecer jamais daquele momento, da felicidade de ter presenciado a emoção promover o agigantamento de um ser, transformando a pequenez demonstrada durante anos de convívio social, visível nos pequenos gestos e também nas coisas de maior importância de uma vida pequena em atos e de mentalidade tacanha, na grandeza de uma mulher capaz de protagonizar de forma surpreendente um momento de tão grande beleza e profundidade.

De que profundezas o ser humano vai buscar coisas que muitas vezes nem ele mesmo sabe ser capaz, foi a pergunta que ficou no ar enquanto escutávamos a minha amiga relatar o ocorrido.

É assim como se existisse em cada ser uma mina de minérios e mistérios... Escondidas nas profundezas dessa terra desconhecida que somos  nós seres humanos, muitas vezes passam uma vida sem ser descoberta. Quantas riquezas podem viver latentes e acabam morrendo sem serem exploradas!

Outras vezes por estranhos caminhos conseguem ser descobertas por entre labirintos que se cruzam, conjunção de fatores alheios a vontade do ser, afloram e deixam-se mostrar da forma mais inesperada! Aí os veios são explorados, riquezas mineradas. Preciosas pedras brutas lapidadas em jóias de rara beleza que alimentam a vaidade e enchem os olhos do mundo!

E mais do que uma simples história para lembrar em momentos de esquecer da vida com os amigos pelas mil e uma noites de farras e conversas foi tempo de dupla revelação.

Uma pessoa que tudo indicava iria permanecer bruta para sempre, pois o material extraído parecia sem qualidade, se descobre e se mostra ao mundo pronta para o trabalho de lapidação. Bendita Neve York!

A outra ao relembrar  esse episódio com tanta emoção ddeixou cair os últimos resquícios de reserva que alguém pudessemos ter na forma de relacionamento que pareceia muitas vezes polido, educado, até  um tanto frio e distante. Havia uma parede invisível que  barrava uma maior aproximação que implicasse em gestos de demonstrações de afeto e carinho. Conhecíamos o seu carater, sabíamos até da sua amizade mas não havia condição de maior intimidade. A sua emoção daquele momento fez ruir por terra o escudo invisível que barrava uma aproximação maior e  pudemos vislumbrar em toda a sua plenitude a sua verdadeira natureza interior que ela esconde para a maioria dos mortais e que como diz Caetano é um livro místico que somente a alguns a que tal graça se consente é dado lê-la. 

Neve York. Neve York. A partir de agora pode-se reescrever a música que consagrou Frank Sinatra e pedir a ele que a imortalize novamente na sua nova versão e a envie diretamente para os corações que ainda são capazes de se emocionar e entender a emoção mesmo de quem parecia não ter capacidade para senti-la.
Neve York. Neve York. Marry Christmas! No mês de dezembro que se aproxima, em suas ruas quem dera alguém possa deixar jorrar emoções puras e verdadeiras e que não sejam só em conseqüência das entradas e saídas de suas lojas carregados de sacolas.

Nova York. Big Apple. Neve York.
Happy new year!

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

IN REQUIEM





E todo dia, mal o dia começa, lá estão eles - "os elefantes" - nas mesmas posições que escolheram e teimam em não abandonar. Defendem assim os seus lugares com as suas presenças inúteis, ociosas presenças. Bundas esparramadas nas cadeiras, corpos derreados sobre as mesas, gavetas que se abrem e se fecham sem mais nada de importante para guardar ou esconder.
Aqui e ali alguns restos dos velhos tempos que vivem a exaltar a invocar a clamar...

Papéis rabiscados ao acaso; garatujas sem arte e sem nexo, balanço da contabilidade doméstica - que sempre fecha no vermelho; cálculo de reajuste de salário - sempre defasado; relação das prestações a pagar - eternos escravos do crediário.
Às vezes reclamam - força do hábito.

Não há nada mais a fazer quando se espera, designadamente, a hora de morrer.
Lápis canetas borrachas grampeadores clipes carimbos que importância têm as armas depois que a guerra acaba?!
Os "profetas do apocalipse", escabriados, preferem esperar novas notícias Boatos contraditórios circulam pelos corredores. Jornais passam de mão em mão. Na dúvida o melhor é esperar a próxima edição.
E voltam ao nada fazer de antes.
De vez em quando uma agitação - um mensageiro acaba de trazer mais uma notícia da corte - o rei suspende a sentença ¬não haverá extinção.
Na reestruturação caem os "malditos invasores". Satisfeitos os "antigos" - com ares de donos e senhores - regozijam-se e aproveitam para execrar os "desertores".
Na falta de heróis mais excitantes, as emoções ficam por conta:

Da empregada que rouba.

Do marido que trai.

Da sogra que enche o saco.

Do filho que dá trabalho para comer, demora a dormir, chora para não ficar no colégio, descobre a coleguinha, faz gracinhas inteligentes, solta o primeiro palavrão, começa a fazer perguntas embaraçosas (que a mãe nunca sabe responder).

Da filha da vizinha que está grávida e o rapaz não quer casar.

Da colega encalhada que se envolve com homem casado.

Dos trejeitos do rapaz mora ao lado.

Do final da novela que nunca agrada.

Das cenas do próximo capítulo.
Se vocês gostaram, não percam.
Amanhã, no mesmo lugar, no mesmo horário, exatamente igual.

Até que a morte nos separe

Amém

QUAL É O SEU MEDO?

DIGAS COM QUEM ANDAS E EU TE DIREI QUEM ÉS

Medo de ser solidário. Medo de ser voluntário.
Medo de santuário. Medo de me entregar à pessoa errada.
Medo de errar por não ter confiado.
Medo de ser pego dirigindo embriagado.
Medo de perder o emprego e ficar desempregado.
Medo de perder o pouco que foi conquistado.
Medo de chorar as mágoas.
De não lavar a alma. Medo de cantar uma ária.
Medo de ir para a Itália.

Medo da gripe aviária. Medo de me perder na rodoviária.
Medo da rotina diária. Medo de ser revolucionária. Medo de perder a sandália.
Medo de cair no conto do vigário. Medo de ser clonado. Medo de levar pancada. Medo de ficar encalhada. Medo de dar mancada. Medo de ficar falada.
Medo de ficar na cama solitário.
Medo de cair na lama. Medo de ficar careca. Medo de usar aparelho
Medo de secador de cabelo. Medo de passaredo. Medo de ter pesadelo.
Medo de ir para Cabedelo.

Medo de ser pego na mentira. Medo da ira divina.
Medo de ser assaltado na esquina. Medo de ser entregue à própria sina.
Medo de não ter sorte. Medo de não ter cura. Medo da dura. Medo de ler bula.
Medo de ficar dividida. Medo da vida. Medo da morte.
Medo de não ser forte. Medo de bala perdida.
Medo de canivete. Do Chevete da Ivete. Da lamina do pivete.
Medo de cutucar a ferida. Medo de ficar sem saída.
Medo de ir para a Paraíba.

Medo de perder a amiga para o namorado. Medo de ficar mutilado.
Medo de ser multado no sinal. Medo do começo.
Medo do avesso. Medo do final.
Medo de ser confundido com um marginal.
Medo de “beijar a boca de quem não devia”. Medo de maresia.
Medo de comer tapioca e ficar com azia.
Medo de cabeça oca. De dormir de touca. De voz rouca. De ira e de zanga.
Medo de comer manga e tomar leite. Medo de ganhar alguns enfeites.
Medo de não ter azeite na salada.
Medo de despacho na encruzilhada. Medo de cantora desafinada.
De passar debaixo de escada. Medo de gato preto.
Medo de ir para Ouro Preto.

Medo de perder o amuleto. Esqueleto esquecido no armário.
Medo de vigário de paróquia pequena. Esquema para tirar novena.
Medo de não ir para o céu. De arder no fogo do inferno.
Medo de não viver um amor eterno.
Medo dos rigores do inverno. Dos demônios internos.
Dos agentes secretos. Medo de que a vaca vá pro brejo.
Medo do tédio. Medo do berro. Do berrante.
Medo de judeu errante. Medo de tomar laxante. Medo de dar vexame.
Medo de marasmo. Medo de não ter um orgasmo.
De ter um engasgo comendo peixe. Medo de que me deixem.
Medo de cair do cavalo. Medo de me esborrachar no asfalto.
Medo de menino levado
Medo de ir para o Planalto.

Medo do malvado. Medo de cachorro doido. Medo de me meter em rolo.
Medo de ficar zarolho. Medo de vôo rasante.
Medo de escada rolante. Medo de não ir adiante. Medo do instante seguinte.
Medo de não ter requinte. Medo de não ser bom ouvinte. Medo de gravidez.
Medo do fim do mês. Medo da timidez.
Medo de mim. Medo de vocês.
Medo de galinha pedrês. Medo de não ter pressa.
Medo de ir para Odessa.

Medo que a hora seja essa. Medo de fugas.
De eternas buscas. Medo de mulheres etruscas
Medo de comer trufas. Medo de “c’est fini”. Medo de ser uma Geni.
Medo de rir. Medo de não ser levado a sério.
Medo de mistério. Medo de morder a isca. De seguir tudo à risca.
Medo de criar rugas. Medo de pessoas confusas. Medo de mentes obtusas.
Medo de pessoas reclusas. Medo de fuso horário.
Medo de ouvir o rádio. Medo de entrar na sala.
Medo de esquecer a fala. Medo de perder a mala. Medo de quem cala.
De quem mente. De quem nada sente. Medo de gente.
Medo de ir para o Oriente.

Medo de que a coisa esquente. Medo de ir à feira. Medo de cara feia.
Medo de coisa feita. De coisa armada. Medo de teia de aranha.
Medo de comer lasanha. Medo de quem me assanha. Medo de não ser aceita.
Medo de não saber a receita. Medo de mesa posta. Medo de fazer aposta.
Medo da ignorância. Medo de dar aliança. Medo do preconceito.
Medo de ar rarefeito. Medo de pretérito. Do mais-que-perfeito.
Medo de estufar o peito. Medo de não fazer direito.
Medo de dó de peito. Medo de altura. Medo da loucura. De ir parar em Cascadura. Medo de que nada sobre. Medo de gente pobre. De mesa sem fartura. Medo de doença que não tem cura. De cachaça pura.
Medo de ir para Singapura

Medo de não concluir a licenciatura.
Medo de não ter uma chance. Do não estar ao alcance.
Medo de morrer. Medo de câncer.
Medo de mal de Hansen. Medo de dar espirro e romper uma veia.
Medo de um esbirro no meu caminho. Medo de vitórias de Pirro.
Medo de alegria exagerada. De tristeza disfarçada.
Medo de pobreza extrema. Medo de reprimenda. Medo de cantar um fado.
Medo do boi. Medo do gado. Medo de dia abafado. Medo de risco calculado. Medo de ser fotografado.De tarado solto na rua. Medo de virar uma perua.
Medo de escrever um poema. De ir ao cinema. Medo de chuva e trovoada.
Medo de comer coalhada. Medo de médico. De tomar remédio.
Medo de cemitério. De alma penada. Medo de comer torresmo com farofa.
Medo de servir de galhofa.Medo de morrer cedo.
Medo de não ver o filho crescer.
Medo de ir ao dentista. De passista de escola de samba.
Medo de ir para Mumbaba.

De uma mamba negra me morder. Medo de fantasma.
Medo de ficar “Esperando Godot”. Medo de amargor.
Medo de pegar “o trem que já vem...que já vem...que já vem...”
Medo de não ter vintém. Medo de não ver saída.
Medo de mulher parida. Medo de me envolver.
Medo de chover. Medo de escurecer.
Medo de ser pessimista. Medo de ser. Medo de não ser.
Medo de dizer uma ofensa. Medo de falar o que pensa.
Medo de ouvir o que não quer. Medo de dizer blasfêmia.
Medo de coisa efêmera. De fêmea no cio.
Medo de ir para Cabo Frio.

Medo de não saber o que dizer. Medo de lembrar. Medo de esquecer.
Medo de envelhecer. Medo de não amanhecer.
Medo de amar e não ser amada. Medo de ler o aviso. Medo do indeciso.
Medo da falta de juízo. Medo de me lambuzar de mel.
Medo de provar do fel. Medo de morrer de gula. Medo que ninguém me engula.
Medo de ler a bula. Medo de ver o exame. Medo de dar vexame.
Medo de enxame de abelha. Medo de sangue.
Medo de que a morte me chame. Medo que você me ame.
Medo de coisa besta. Medo de ver o capeta. Medo de capitular.
Medo de não passar no vestibular.
Medo de ir para o Canadá.

Medo de não saber nadar. Medo de perder a hora da sesta.
Medo de não ir à festa. Medo de não saber a hora certa de chegar.
Medo de não ter dinheiro no bolso. De morrer de desgosto.
Medo do mês de agosto. De subir de posto. De ser posto pra fora do lugar.
Medo de ficar ilhada. Medo de despacho na encruzilhada.
Medo de viajar de avião. Medo de tomar injeção. Medo de relâmpago e trovão. Medo de confusão. Medo de pressão alta. Medo da falta de tesão.
Medo da nova direção. Medo de ambiente soturno.
Medo do apito do guarda noturno. Medo de chegar outubro.
Medo dos anéis de Saturno. Medo da escuridão.
Medo de ir para o Japão.

Medo do sim. Medo do não. Medo de pena de pavão. Medo de buraco fundo. Medo do impacto profundo. Medo de vagabundo. Medo de moribundo.
Medo de banda. Medo de tudo que abunda. De conhecer uma Raimunda. Catifunda. Medo que ela me confunda. Medo de perfume barato.
Medo de rato. Medo do fumo. Medo do fim do mundo.
Medo de ir fundo. Medo de entrar no mato.
Medo de fiado. Medo do piado agourento da coruja.
Medo de bicho peçonhento. Medo de sapo. Medo de rato. De lesma gosmenta.
De aranha venenosa. De barata sebosa. Pavor de cururu.
Medo de não ir para Istambul.

Medo do norte. Medo do sul. Medo de vento forte. De redemoinho.
Medo do espinho. Medo da rosa. Medo de verso.
Medo de prosa. Medo de cair e não levantar. Medo de dançar.
De andar na corda bamba. De explodir a bomba. Medo de perder o teto.
Medo de comer batata frita. Medo de engordar. De ficar em coma.
Medo de ir para Oklahoma.
De brincar de cabra cega. Medo de briga. Medo de fila. De brinquedo moderno.
Medo de samba enredo. De crime hodierno. Medo de cheque sem fundo.
Medo de falsetas. Medo das trombetas do fim do mundo. Medo do apocalipse. Medo de eclipse. Medo que alguém me evite. Medo que algo me excite.
Medo de secador de cabelo. De embarcar num veleiro.
Medo de olho gordo. Medo de mau cheiro. Medo da tentação.
Medo do diabo. Medo de comer quiabo. Medo da dita cuja.
Do inimigo oculto. Do amigo urso. Medo de refluxo. De defunto no caixão.
Medo de ir para o Afeganistão.

Medo de paixão violenta. De ciúme desmedido. Medo de tormenta.
De água benta. De comer polenta frita. De meter a mão na ferida.
Medo de quem grita. De quem fica em cima do muro.
De quarto escuro. Desconjuro. Medo de juros. Medo de comer no quilo.
Medo de esquilo. Medo de dar coió. Medo de monstro de um olho só.
Medo dos cafundós. Medo de injúria. Medo de coisa esquisita.
Medo de receber visita inesperada. Medo de ser atropelada.
Medo de pagar mico. Medo de pegar bicho de pé. Medo de circo.
Medo de ir para Quito.

Medo disso. Medo daquilo. Medo de ter medo de tudo.
De acordar tarde. De dormir cedo.
Medo de ousar. Medo de casar. Medo de mudar de casa.
Medo de ir pra rua. Medo de não ver a lua cheia.
Medo dei ir para Flexeiras.

Medo de carne crua. Medo de tromba d’água. Medo de peixeira de malandro.
Medo de noite enluarada. Medo de lobisomem. Medo de massagem.
De mensagem cifrada. Medo de casa mal-assombrada. Medo de fada.
Medo de noite abafada. Medo de pegar goiaba no quintal do vizinho.
Medo de gente malsã. Medo do fantasma do porão.
Medo que Deus não me proteja.
Medo que o sacristão me veja. Medo de entrar em igreja.
Medo de dar de bandeja.
Ora veja. Que seja. Medo de não caber em si.
Medo de ir para o Tennessee.

Medo de pegar o que me cabe. Medo de que tudo acabe.
Medo de descer pelo corrimão
Medo de ser pego na contramão. De sair de cena. Medo de não ter pena.
Medo de me jogar da sacada. Medo de tomar a decisão errada. Medo de não merecer o paraíso. Medo do juízo final. Medo de não ter salvação.
Medo de maldição. Medo de chupar limão. Medo de sentir dor.
Medo da cor dos olhos teus. Medo dos filisteus.
Medo do meu do teu do nosso furor.
Medo de ir para a Honolulu.

Medo de vodu. Medo de desamor. Medo de virar devedor.
Medo de ser um chato. Medo de brochar no ato. Medo de ler o extrato.
De limpar o prato. Medo de pagar o pato. Medo da cafetina.
Medo de dobrar a esquina. Medo de rinha. Medo de fazer faxina.
Medo de quem se aproxima. Medo de coisa extinta. Medo de ladainha.
Medo de ser farinha do mesmo saco. Medo de virar discípulo de Baco.
Medo de torcer pelo time errado. Medo de perder o campeonato.
Medo de ser um torcedor fanático. Medo do assédio das fãs.
Medo dos Hooligans. Medo de torcida organizada. Medo de parada militar.
Medo de ir para o Panamá.

Medo de pegar Van em dia de domingo. Medo de apostar no bingo.
Medo do sino da matriz. Medo do aprendiz. Medo de escapar por um triz.
Medo de ser infeliz. Medo da meretriz. Da bissetriz. Da nutriz. Do almofariz.
Me diz cadê a Beatriz. Medo da atriz. Medo da fama. Medo de Osama Bin Laden. Que Deus me guarde! Medo do aquecimento do planeta.
Medo da globalização. Medo do cowBush. Medo de truste. Medo de embuste.
Medo do alcance da CIA. Medo da tecnologia. Dos mega. Dos Terábytes.
Medo ir para o Vale do Silício.

Medo de suplício. Das armas biológicas. Da bomba atômica.
Do derretimento das geleiras. Da serra elétrica. De ser alvo fácil.
De ser o lado fraco. De ser a corda que arrebenta. De água benta.
De mão santa. Da CNBB. De não ter o que beber. Medo de choro de bebê.
Medo de ver a terra tremer. Medo de ser. Medo de não ser.
Medo de viver. Medo de correr risco. Medo de comer marisco.
Do cisco que arde no olho. De comer repolho e arrotar podre.
Do cachorro que ladra e morde. Medo de tomar chocolate.
Medo que alguém me mate. Medo que nada me escape.
Medo do tacape fatal. Medo de trocar de canal. Medo do Plantão Nacional.
Medo de ler jornal. Medo de passar mal. De pivete no sinal.
Medo de ir pra Bacabal.

Medo que o babal me deixe zureta. Medo de cara preta.
De pedal de bicicleta. Medo de entrar pelo cano.
Medo que acabe o ano. Medo de esteira ergométrica.
De gente sem eira nem beira. Medo de rinoceronte. Medo de escada rolante.
Medo de ficar preso em elevador. Medo de ventilador.
Medo de ficar sem amor. Medo do santo cair do andor.
Medo de pane em motor. De carta anônima. De parada militar.
De revolucionário Trotskysta. De bomba terrorista.
Medo de maledetto carcamano.
Medo de ir para Guantânamo.

Medo do BID. BIRD. Anatel. Pinel. Benin. Jardim.
Medo do FMI CNN. Da ONU.
De ficar nu. De comer cru.
De ter que ir para Honolulu.

Medo de não ser como mestre Zulu.
De não ingressar no Beribazu. De perder para o cordão azul.
Do Barba Azul. Dos mares do Sul.
De ir morar em Igarassu.

Medo do ir e vir. De não ter mais do que rir.
Medo do que ainda está por vir.
Medo de dormir e não acordar.

Medo de amar...

NOSSAS CIDADES


Todo lugar tem direito a ter

Sua igreja matriz
Sua praça principal
Seu casario antigo
Seu mercado municipal

Registros espaciais da sua história
Sua memória, seu referencial

Sua casa mal assombrada
Sua mina abandonada
Suas cadeiras na calçada
Sua praça da estação

Seu sobrado das donzelas
Seus bares, suas bodegas
Sua Rua da Perdição

Sua casa do vigário
Sua Igreja do Rosário
Seu canto, seu santuário
Seus caminhos da procissão

Sua cruz, seu cruzeiro
Seu herói, seu prisioneiro
Seu santo padroeiro
Seu parque de diversão

Registros espaciais da sua história
Seus marcos, sua tradição

A cidade é assim
Em cada canto uma história
Uma lembrança viva

Mas a cidade ó o que são as nossas vidas
As nossas relações sociais e de trabalho

Por isso a cidade está em constante mutação

São coisas que nascem
Enquanto outras desaparecem
Coisas são destruídas
Para que outras possam viver

Porém
Algumas coisas, por serem especiais
Devem ser conservadas
Para que não morram com elas

A nossa história
As nossas lembranças
A nossa sobrevivência como seres humanos
Que ainda somos!

A saga de uma garota e um Rolex

Com muito amor no coração e pouco dinheiro na bolsa, aquela garota ingênua e pura saiu, certa tarde de outubro, em busca do presente ideal para aquele que ela pensava ser o amor da sua vida.

O ano era 1977. O dia 8 se aproximava e ela queria fazer o melhor, dar o melhor de si, no melhor presente do mundo: aquele que é o objeto maior de desejo do presenteado, no caso o aniversariante, seu namorado.

Sem o stress de ter que adivinhar, pesquisar e pensar no que iria agradar o namorado achava que, dessa vez, seria uma tarefa fácil escolher um presente para um homem especial. Não havia erro. Era comprar e agradar em cheio. Após saltar do ônibus na Praça José de Alencar, enquanto caminhava pela Rua Guilherme Rocha, onde se concentravam as joalherias da cidade à época, anterior à era dos shoppings, já antecipava aquele momento de prazer e satisfação quando poderia ver a alegria saltando daqueles lindos olhos azuis que ela tanto amava!. E aquela boca sorrindo encabulada sob o bigode que, juntamente com uma barba bem aparada, compunham tão maravilhosamente aquele rosto de artista de cinema de Hollywood, que ela não se cansava de admirar e beijar.
Nos seus devaneios de garota romântica e sonhadora, que pensa e vê o mundo por uma ótica bem particular as coisas valem pela sua essência e um relógio para ela é apenas um instrumento de marcar as horas, que deve, ser antes de tudo funcional, embora também possa ser bonito e bom. Apenas isso.
E nesse mundo particular dela não cabem referências e muito menos fidelidade ou adesão ao mundo fútil, frívolo, efêmero e, sobretudo, caro das grifes famosas que ditam a moda e povoam o imaginário das jovens cabecinhas das garotas de pelo menos uma boa parte desse planeta.
Até enão, um mundo que ainda não havia se transformado na “Aldeia Global” de Herbert Marshall McLuhan, sociólogo, filósofo e educador canadense, o que somente veio a acontecer a partir do advento e da popularização do celular e da internet quando o conceito começa a se concretizar.
Jamais passaria por essa cabecinha que um objeto qualquer – uma marca de relógio pudesse representar um grande símbolo de status para quem o possui e faz questão de ostentá-lo no braço com orgulho. Isso numa época em que ainda era possível sair por aí de forma indiscriminada com um rolex no pulso. Hoje corre um sério risco de perdê-lo para o ladrão, na melhor das hipóteses, quando não de perder a vida ou o braço que pode ser arrancado junto com o relógio na pressa da violência desenfreada em que estamos todos mergulhados nesse mundo globalizado que MacLuan previu!
Mas nesse caso especificamente, ele não podia ser um relógio qualquer, pois o namorado se recusava a colocar outra marca no pulso que não fosse um ROLEX. A cabecinha lunática nunca pensou o que poderia significar essa estranha decisão. Ela se fixou apenas nesse nome Rolex o objeto de desejo do seu amado. Os motivos eram dele e só ele poderia saber o porquê e ela respeitou como costuma respeitar as vontades, opiniões e crenças de todas as pessoas. Para ela só interessava satisfazer esse desejo do amado no dia do seu aniversário.
Caminhando pela rua com esses pensamentos na cabeça e uma idéia no coração foi surpreendida pelo “não” proferido pelo estupefato vendedor de uma pequena e acanhada joalheria da Rua Guilherme Rocha, primeiro de uma série de outros ‘nãos” que ela iria receber ao longo da sua peregrinação em resposta ao que pensava ser uma pergunta simples e de fácil satisfação.
- Moço, aqui tem Rolex?
- Não, não temos moça.
Nem mesmo quando a cena começou a se repetir indefinidamente a garota ligou o desconfiômetro e percebeu que havia alguma coisa estava errada com a sua procura.
Continuou o seu ritual de loja em loja naquele corredor comercial da cidade especializado em óticas e joalherias.
Em uma das últimas lojas o vendedor deu uma dica que ela fosse procurar na King Jóia que era, naquele tempo, uma das mais luxuosas e caras da cidade.
Após agradecer ela resolveu acatar a sugestão e ir direto à loja indicada.
Já na porta deu para sentir a diferença de estilo. E quando o nome Rolex foi mencionado foi possível então perceber a mudança de tratamento da vendedora. Foi como se tivesse sido pronunciada uma senha, um “Abra-te Sésamo” a famosa frase mágica usada para abrir as portas da caverna do tesouro no conto persa que narra as aventuras de Ali Babá e os Quarenta Ladrões, do Livro das Mil e Uma Noites ou (Noites na Arábia), e que faz parte do imaginário da nossa geração.
Ela foi então gentilmente conduzida ao interior da loja e tratada com toda a deferência por uma vendedora tão solícita e empenhada em agradar que fez desconfiar que alguma coisa estivesse errada ali, no velho estilo do sertanejo nordestino, ressabiado das promessas dos políticos em época de eleição: “esmola grande o santo desconfia”. Mas a vendedora vislumbrando ali uma possível e provável gorda comissão em cima daquela tão ansiada venda, com os olhos faiscando de tão entusiasmada, tratou de deixar a freguesa o mais confortável e a vontade possível o que só fez contribuir para aumentar a estranheza da garota que não estava acostumada com aquilo.
Ela soube então, pela primeira vez na vida, o que é ter um tratamento diferenciado, um tal de tratamento VIP, de Very Important Person.
Sentada confortavelmente e imediatamente servida de água e cafezinho como manda a tradição esperou uns poucos minutos até que o gerente em pessoa entrasse trazendo aquele objeto não identificado e mostrasse com toda a pompa e reverência, como se fosse o próprio tesouro da caverna de Ali Babá a que ela fizera jus quando pronunciara a palavra mágica.
O objeto reluzia naquele tapete vermelho voador como querendo hipnotizar a vítima que estava ali pasma ante o que acabava de presenciar. Sem palavras ela ficou pensando que estava vivendo o início de um conto de fadas onde o final deveria ser feliz, mas que os caminhos pareciam tortuosos e difíceis de alcançar.
Àquela altura já começava a desconfiar que essa pompa toda só poderia significar que estava lidando com um mundo novo, que jamais pensara existir. Uma realidade muito distante da sua e, portanto fora do alcance das suas limitadas e minguadas condições financeiras.
Enquanto isso a vendedora apresentava as características e qualidades excepcionais do objeto não identificado. Esse é “O RELÒGIO”. O maravilhoso relógio que desafia os elementos: à prova de umidade. À prova de água. À prova de calor. À prova de vibração. À prova de frio. À prova de poeira. E toda a gênese da famosa campanha de anúncios de testemunhos que foi realizada no seu lançamento e que continua até hoje.
A marca Rolex foi a primeira também a introduzir um rotor "perpétuo" que literalmente dá corda ao relógio a cada movimento do pulso de usuário.
O primeiro em tudo: relógio à prova d’água, primeiro relógio de pulso; primeiro relógio de precisão absoluta; primeiro com cronômetro; primeiro relógio automático...
À prova de bomba atômica, muito útil para quem prefere inverter o ditado: “vão-se os dedos, fiquem os anéis” no caso “vão-se os braços, fiquem os Rolex”; Testado nas profundezas dos oceanos; nas altitudes, em terremotos, tsunamis; todo em ouro de tantos quilates. Quanto mais qualidades mais ele se mais se distanciava como se perdendo na linha tênue que separa o ideal do possível.
Ele foi submetido às piores condições possíveis e sobreviveu às profundezas do oceano com Jacques Piccard e à conquista do Everest, com Sir Eduard Hillary. Ele manteve a sua precisão em temperaturas abaixo de zero no Ártico, no escaldante Saara e na ausência da gravidade do espaço. Ele ignorou acidentes de aviões, naufrágios, acidentes de lanchas, quebrou a barreira do som e foi ejetado de um caça a jato a 22.000 pés
Certa vez foi derrubado por acaso em uma máquina de lavar roupas que o lavou em um ciclo escaldante, enxaguou, centrifugou e secou; o pára-quedista australiano que derrubou-o a 800 pés da superfície; o californiano cuja esposa acidentalmente assou o seu Oyster em um forno a 500 graus. Em todos os casos, o Rolex recuperado estava funcionando perfeitamente.
Enquanto a vendedora falava e falava ela só pensava em achar uma saída honrosa para não passar atestado de pobre e desinformada.
Sabia que chegara ao fim da linha - Rolex nunca mais. Mas queria deixar a impressão que podia, mas que, racionalmente resolvera não comprar. Faltava-lhe apenas um bom motivo que justificasse tal saída estratégica – tipo “à francesa”.
E a solução lhe veio da própria vendedora que, impressionada com o fato de alguém se propor a dar um presente assim tão caro a um simples namorado, que nem noivo ou marido era, acabou por dar a deixa;
-Por que a senhora não escolhe uma outra marca mais barata e que não signifique um prejuízo tão grande em caso de rompimento da relação?
A vendedora então resolveu investir em outra linha e passou a falar maravilhas de outras marcas que ela talvez tivesse inferido cabiam perfeitamente no bolso da cliente. Ela não tinha como saber ao certo, mas na verdade aquela primeira opção era mais de dez vezes o salário que a nossa garota ganhava com o contrato temporário do governo.
E a menina que podia ser ingênua mas não era boba nem nada, pegou a deixa e, após simular um tempo refletindo, como se estivesse ponderando, pensando, acabou de achar a saída honrosa que tanto ansiava e meio acatando a sugestão sensata da vendedora mencionou que ela tinha razão mas que ela precisava primeiro sondar junto ao amado a possibilidade dele aceitar uma outra marca.
Mas a essas alturas do desengano não estava mais interessada em comprar nenhum relógio, pois qualquer outro de tão inferior valor não teria nenhum impacto positivo na sua relação e correria o risco até de não ser aceito ou então virar um daqueles presentes de coisas inúteis que o presenteado aceita por educação, mas nunca usa e deixa jogado num canto descuidadamente numa gaveta qualquer de um móvel espalhado pela casa ou escritório.
Ela também não queria correr o risco de ver a decepção nos olhos do amado, quando abrisse o pacote. Nem ganhar um sorriso amarelo... Mal disfarçando a decepção de quem pensava que ia ganhar o que tanto sonhava.
Se não é o que ele quer que não seja nenhum.
Foi argumentando nessa linha que ela pensou ter saído honrosamente dessa empreitada junto à vendedora que ainda a encheu de cartões com nome, endereço e número de telefone para o caso dela resolver efetuar alguma compra.
Já na calçada a garota que entrara completamente leiga sobre relógios famosos e saiu quase doutora em Rolex não pode deixar de rir da trapalhada. E seguiu pela rua, a procura do ponto de ônibus mais próximo, pensando no que a vendedora devia estar achando de toda essa situação e principalmente dela.
Da forma como estava vestida – calça jeans desbotada; camiseta básica de malha; bolsa feita de couro cru, chinelo de enfiar o pé, também de couro cru, com currulepo entre os dedos – ou ela a tomou por uma pobre pretensiosa ou por uma rica excêntrica. Com direito a uma terceira possibilidade: uma doida varrida.
Com qual dessas a vendedora ficou nunca ela pode saber. Tampouco se deu ao trabalho de perguntar. Seria humilhação demais. Melhor deixar para la, concluiu e continuou a andar sorridente para a parada do ônibus.
Foi então dessa forma sui generis que o Rolex entrou na vida de uma garota que amava os The Beatles e os The Rolling Stones. Entrou para sair em seguida. Não esquentou lugar. Não disse a que veio. Nem quis ficar.
E o namorado ganhou de presente uma festa bonita e muito carinho.
Mas continuou lhe perguntando as horas quando tinha algum compromisso. E o melhor de tudo foi que ela pode continuar ditando a hora de encerrar a seção de namoro no sofá da casa dos pais toda noite por um bom tempo até que deu a hora dele ir definitivamente da sua vida!.Sem choro nem ranger de dentes. Mas também sem Rolex no pulso.
Hoje quando ela vê a banalização da marca nas muitas imitações que aparecem por aí nos descuidados pulsos de qualquer pessoa nas versões piratas que a globalização fez correr o mundo a partir dos produtos Made in China, Made in Taiwan; pirateados do Paraguai via ponte da Amizade ou saídos dos fornos clandestinos de uma fabriqueta de fundo de quintal em qualquer parte desse país, ela lembra a Aldeia Global de MacLuan e sente que estamos chegando lá.
A tecnologia fez do mundo uma aldeia global. Só que essa aldeia continua tão ou mais desigual como no tempo em que havia cercas e muros separando cidadãos em Norte Sul / Leste Oeste; Ocidente – Oriente / ricos – pobres / pretos - brancos.
Embora alguns Rolex continuem marcando o tempo por todos os cantos da Terra nos braços refinados de Reis e Rainhas, altos executivos, empresários, artistas de cinema outros milhares de similares também andam nos braços musculosos e cansados dos trabalhadores que pagam por uma imitação em suaves prestações mensais numa generalização que é a marca maior desse tempo que estamos vivendo..
E foi desse dessa forma, desajeitada e inusitada que o Rolex entrou na vida de uma garota ingênua e pura recém chegada do interior para estudar na capital e foi através dele que ela pode vislumbrar um mundo de falso glamour, ostentação e frivolidades que ela nunca imaginara pudesse existir na vida real . Achava que era só nos contos de fada que ela tanto lera na infância e adolescência que existisse um mundo assim de símbolos e ostentações, brasões modernos que diferenciam pessoas em classes sociais como castas no velho oriente. O mundo de reis e rainhas como Sissi, Sissi a Imperatriz e Sissi e seu Destino, filmes que fizeram a cabeça da geração pós-guerra. Na ilusão de um mundo mágico povoado por príncipes e princesas, Cinderelas, Gatas Borralheiras que os livros e, mais recentemente as telas de cinema trouxeram em tamanho real para o nosso mundinho limitado de uma cidade do interior do nordeste do Brasil onde a tecnologia estava longe de atingir.
Choque entre o azul e o cacho de acácias....